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sábado, 24 de junho de 2000

Bioética: a nova disciplina

Texto contido em:
MOTA, Sílvia M. L. Da bioética ao biodireito: a tutela da vida no âmbito do direito civil. 1999. 308 f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil)–Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999. Não publicada. [Aprovada com distinção].
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Jovem modalidade de conhecimento, nasce a bioética de uma interrogação fundamental que o homem se faz sobre o influxo do desenvolvimento da biologia molecular no seu próprio futuro. Neologismo derivado das palavras gregas bios (vida) e ethike (ética), é o estudo sistemático das dimensões morais - incluindo visão, decisão, conduta e normas morais - das ciências da vida e da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto interdisciplinar. Coloca-se como o suporte da vida no futuro, através do inspirado palavrear de Van Rensselaer Potter, professor de oncologia da Universidade de Wisconsin, em sua obra clássica Bioethics: brigde to the future: “Eu proponho o termo Bioética como forma de enfatizar os dois componentes mais importantes para se atingir uma nova sabedoria, que é tão desesperadamente necessária: conhecimento biológico e valores humanos.”[1] Ainda que o referido autor não tenha, inicialmente, atribuído ao novo termo o conteúdo que atualmente lhe é auferido, certo é que, a partir de então, começou-se a designar por bioética o conjunto de preocupações, discursos e práticas que surgiam e que se vieram a estruturar num novo saber.[2] Tratou assim, a nova disciplina, de unir os valores éticos com os biológicos, servindo de ponte entre as duas culturas das Ciências e Humanidades, por séculos apartadas, em razão da resistência de grande parte dos filósofos em aceitar os avanços dos cientistas e suas tentativas de estabelecer um liame entre a conduta ética do homem e sua descendência natural.

Inicialmente, o novo termo se referiu fundamentalmente aos problemas do meio ambiente, sob a influência do ambientalismo e da ecologia no final dos anos sessenta. Mas, logo a seguir, concentrar-se-ia nos problemas inerentes ao núcleo central da biomedicina, de tal modo que a atuação da bioética tem sido vista por Andrew C. Varga como a disciplina que estuda a moralidade da conduta humana na área das ciências da vida.[3]

Com o surgimento, nos meados dos anos setenta, da engenharia genética, os cientistas viram-se chamados a serem os protagonistas daquela nova disciplina, considerando a respeito do que se poderia e deveria fazer para sobreviver e o que não deveria ser feito, se o objetivo fosse manter e melhorar a qualidade de vida do planeta. Não era mais possível à moral médica contentar-se em levar em conta, como vinha a fazer - mesmo que esporadicamente - as regras de Hipócrates, tais como a generosidade, compaixão, devoção e desinteresse, então insuficientes. As recentes evoluções terapêutica e biológica alteraram não só o destino dos doentes como concederam ao homem o domínio da reprodução e da hereditariedade. O destino do mundo passou a depender “[...] da integração, preservação e extensão do conhecimento que possui um número reduzido de homens que, somente agora, começam a se dar conta do poder desproporcionado que possuem e quão enorme é a tarefa a realizar.”[4]

A bioética é um ramo da filosofia moral e, como tal, uma forma de conhecimento que pretende analisar o fenômeno científico conhecido como experimento genético ou engenharia genética. Em um sentido amplo, pode ser definida como o conjunto de questões com uma dimensão ética originada pela intervenção das novas tecnologias em qualquer âmbito da vida orgânica.[5] O dilema ético estabelece-se no instante em que benefícios e danos não se deixam facilmente delimitar e controlar. O tecnicismo traz inúmeros benefícios, mas pode também desencadear situações de risco para a vida dos seres humanos. Esses não são independentes das influências do mundo experimental[6] mas, havendo desconformidade entre benefícios e possíveis riscos, coloca-se em questão a viabilidade das técnicas manipuladoras, ou se pede um mínimo de responsabilidade, de controle, e uma progressiva diminuição dos riscos no ato da experimentação.[7]

A nova biotecnologia introduziu alterações de tão diferentes escalas, objetos e consequências, que o quadro da ética anterior já não pode contê-los.[8] Necessário redefini-lo no contexto suscitado pelas emergentes questões no campo da saúde e da vida humana.

Como em todo fenômeno histórico complexo, as causas que dão origem aos problemas gerados pelo desenvolvimento da técnica biomédica são múltiplas e o grau de alcance de cada uma destas causas, em cada um dos indivíduos da sociedade, é extraordinariamente variável.[9] Seria, contudo, improdutível, mesmo porque impossível, estancar o curso do conhecimento[10], embora sejam detectados vestígios de mudança que devem levar em consideração os agentes responsáveis pelos erros provenientes de determinadas ações. É nesse momento que surge a bioética, propondo estudar a moralidade da conduta humana no campo das ciências da vida.[11] Inclui a ética médica, mas vai além dos problemas clássicos da medicina, quando leva em consideração os problemas éticos erigidos pelas ciências biológicas, os quais não são primeiramente de ordem médica e nem regulados pelo Código de Ética Médica. Não é para ser entendida como um gênero de conselho moral e não tem como objetivo fornecer respostas para questões particulares. É, antes, uma nova disciplina orientada a buscar a correta aplicação dos novos conhecimentos, com a única finalidade de melhorar a qualidade de vida da espécie humana e de garantir a sua supervivência. Essa condição a liberta de ser um código normativo, deixando-a livre para considerar o mérito de cada uma das questões inerentes à vida e à saúde humanas, face aos avanços das ciências biomédicas.[12] Cabe-lhe, portanto, identificar na estrutura da prática científica uma normatividade imanente e fundamental, que pode operar como mediação entre a ordem dos fatos e uma ordem dos valores éticos, a qual se descobre a partir da interação entre o ato e o objeto do conhecimento científico.[13] Seu objetivo é ser para a humanidade um caminho onde razão e zelo sejam par constante na dança da evolução biológico-cultural.

O surgimento da bioética deve-se, em grande parte, ao fracasso da tradicional ideia de neutralidade axiológica da Ciência.[14] Sua natureza é neutra, do ponto de vista ético, pois toda descoberta ou todo novo avanço científico não são bons nem maus por natureza, mas sim em relação à finalidade a que se destinam. Na realidade, atualmente a Ciência perde o caráter de inocência que se desvirgina frente ao cientista para entregar-se definitivamente aos interesses e valores. Dessa forma, iguala-se a qualquer outra atividade humana.

REFERÊNCIAS

[1] POTTER, Van Rensselaer. Bioethics: bridge to the future. Englehood Clifs, NJ: Prentice Hall, 1971, p. 2.
[2] ARCHER, Luís. Fundamentos e princípios. In: ARCHER, Luís, BISCAIA, Jorge, OSSWALD, Walter (Coord.). Bioética. Lisboa: Verbo, 1996, p. 17.
[3] VARGA, Andrew C. Problemas de bioética. ed. rev. Tradução por Guido Edgar Wenzel, S. J. São Leopoldo: Usininos, 1990, p. 13. Tradução de: The man issues in bioetjics.
[4] ROA, Armando. La tecnologizacion de la medicina y la bioetica. Boletin del hospital San Juan de Dios, [s. l.], v. 40, n. 1, p. 4, ene./feb. 1993.
[5] MIRANDA, Carmen María García. Perspectiva ética y jurídica del proyecto genoma humano: especial referencia a la patentabilidad de genes humanos. [Coruña]: Universidade da Coruña, 1997, p. 18. (Monografías, 45).
[6] BERNARD, Claude. La science expérimentale. 6. éd. Paris: J.-B Baillière et Fils, 1918, p. 41.
[7] “Recentemente, um estudante perguntou-me como é que eu me comportaria se fizesse uma descoberta potencialmente perigosa para a coletividade. Respondi-lhe que parava a pesquisa, limpava e esterilizava cuidadosamente o laboratório, destruindo a substância em causa. Depois, escrevia uma carta para a Science para informar do acontecido os colegas biólogos e os leitores em geral para solicitar uma discussão sobre o assunto entre todas as pessoas interessadas. Os cientistas devem dar provas de um grande estilo de responsabilidade.” DULBECCO, Renato, CHIABERGE, Riccardo. Engenheiros da vida: um prémio nobel fala do nosso futuro. Tradução: Maria Helena V. Picciochi. Lisboa: Editorial Presença, 1990, p. 97. (Limiar do Futuro, 18). Tradução de: Ingegneri della vita.
[8] JONAS, Hans. Ética, medicina e técnica. Tradução por Antônio Fernando Cascais. Lisboa: Vega, 1994, p. 37. [Tradução do original em alemão].
[9] SERANI M., Alejandro. Desafíos eticos de la técnica biomédica contemporánea. Revista Chilena de Cardiologia, Chile, v. 13, n. 1, p. 22, ene./mar. 1994.
[10] “Um perigo que sempre ronda os meios científicos, diz respeito à possibilidade de surgirem propostas de proibições generalizadas com relação às pesquisas e práticas biomédicas que possam vir a ter seus reais objetivos distorcidos. Neste sentido, é indispensável que as regras e as leis que dispõem sobre o desenvolvimento científico e tecnológico sejam cuidadosamente elaboradas.” GARRAFA, Volnei. Direito, ciência e bioética. O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 126, mar./abr. 1998.
[11] VARGA, Andrew C. Problemas de bioética. ed. rev. Tradução: Guido Edgar Wenzel. São Leopoldo : Usininos, 1990, p. 13. Tradução de: The main issues in bioethics.
[12] SEGRE, Marco. Definição de bioética e sua relação com a ética, deontologia e dicelogia. In: SEGRE, Marco, COHEN, Claudio. (Org.). Bioética. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1995, p. 25. (Coleção Fac. Med. USP, 2).
[13] VAZ, H. C. L. Escritos de filosofia II: ética e cultura. São Paulo: Loyola, 1988, p. 208.
[14] MIRANDA, Carmen María García. Perspectiva ética y jurídica del proyecto genoma humano: especial referencia a la patentabilidade de genes humanos. [Coruña]: Universidade da Coruña, 1997, p. 20. (Monografías, 45).

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