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quinta-feira, 24 de junho de 2004

Investigações biomédicas com embriões humanos: utilitarismo ético

Surge nos séculos XVIII e XIX, em decorrência do movimento positivista, a Teoria do Utilitarismo, entendido este como ética normativa. Formulou-se através da metodologia moral e social de Stuart Mill (Utilitanianism), Jeremy Bentham (The principles of morals and legislation) e, também, de Henry Sidgwick (The Method of ethics).

O princípio fundamental dessa metodologia é anunciado pelo aforismo: fugir da dor e buscar o prazer – a felicidade. A ética utilitarista consiste na identificação do bom com o útil e se expressa no sentido de que a melhor ação é aquela que produz a maior felicidade para o maior número de pessoas, e pior é aquela que, de igual maneira, ocasiona a miséria.(1) Sendo assim, uma ação é moralmente benquista se aspira a busca da felicidade e inaceitável se tende a produzir a infelicidade. Para além da felicidade do agente da ação, considera-se, também, a felicidade de todos aqueles afetados. A felicidade individual concretiza-se quando revela a felicidade geral. Esta afirmação supõe um liame entre a utilidade individual e a utilidade pública, pressuposto do pensamento de James Mill, para quem cada um deseja a felicidade alheia porque essa se encontra intimamente associada à sua própria felicidade.

Mas, pergunta-se, logo de início: quando entra em cena a vida humana, deve-se considerar como critério da reflexão ética o bem individual de um ser humano ou o cálculo de probabilidade maior ou menor que tem um determinado ato ou norma de promover o maior bem abstrato?

Neste texto, a discussão se coloca nos contornos das investigações biomédicas com embriões humanos, a partir das quais se pretende contribuir para o bem-estar do maior número de pessoas. O perigo, iminente, é destituir de valor a vida do embrião, por si mesma, passando-se a tratá-la como um bem físico, nada mais. O conteúdo axiológico, na ética utilitarista, parece erigir-se unicamente na atitude do médico ou do cientista, quando imprimem às suas ações uma finalidade ou intenção, boa ou má. A vida do embrião se reduz à condição de meio adequado para alcançar um fim proposto, nestes casos, a cura de enfermidades ou investigação biomédica. Corre-se, portanto, o risco de lançar ao esquecimento a fórmula kantiana do imperativo categórico: "Age de tal modo que uses a humanidade, ao mesmo tempo na tua pessoa e na pessoa de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como um fim, e nunca apenas como um meio.”

As pedras angulares que se digladiam nos campos da bioética e do biodireito, a favor da investigação com embriões humanos, fundam suas raízes neste utilitarismo ético, que lhes outorga um tratamento que os mantém mais ao lado da natureza relativa às coisas do que às pessoas. A partir desse espectro utilitarista da vida, a dignidade humana se queda notadamente ameaçada, pois a pesquisa biomédica deixa de ser um instrumento humano para melhora da qualidade e expectativa de vida dos embriões. A investigação científica, abalizada no cumprimento de diretrizes e apreciações externas à própria vida humana, repercute - fatal - na consideração do embrião, cuja vida se reinterpreta em termos de utilidade biológica: a vida de um indivíduo humano não tem valor per si, mas só enquanto relacionada a algo ou alguém. Dessa forma, os interesses estranhos ao embrião preponderam frente à realidade humana ali assentada. Esses interesses suscitam investigações biomédicas fundadas num procedimento que norteia uma crescente ausência de proteção jurídica e estimula a coisificação da vida humana embrionária, deixando esta de ser limite ético e alicerce para uma adequada investigação biomédica com embriões humanos.

John Rawls, filósofo, dentro da tradição liberal, resgata a discussão sobre o contrato social e repreende a tendência utilitarista por privilegiar a maximização dos benefícios - o que pode ser conveniente - mas injusto, porque alguns indivíduos são sacrificados em benefício de outros e não se pode ofender a inviolabilidade de cada pessoa considerada na sua individualidade, qualidade que não pode ser sacrificada nem mesmo em favor do bem-estar da sociedade. No mesmo átrio, expõe Heller que as necessidades dos seres humanos – todas – devem ser concretizadas, com exceção daquelas que, para a sua satisfação, exijam que um homem seja meio para outro homem. Para Rawls, existe um equívoco quando se identifica o bem-estar social com as definições de bem, quando se deveria relacioná-lo ao que é justo. A posição de Rawls se lança em razão do destaque social das ideias utilitaristas sobre a admissão de uma sociedade ordenada de acordo com a maximização do bem-estar dos cidadãos. Segundo o pensador, este pensamento contraria as noções básicas de Justiça, afrontando as liberdades de expressão, as liberdades políticas e a igualdade de oportunidades e de direitos. Assume o jusfilósofo o dito kantiano de que nenhum ser humano pode ser usado como meio para se alcançar um fim determinado, mesmo que seja este para beneficiar uma sociedade inteira. Neste passo, considera a dignidade moral das pessoas defendendo o princípio de que cada pessoa deve ser preservada na particularidade, e que é preciso “[...] respeitar as distinções entre as pessoas." (2)

Deve-se salientar que a Teoria do Utilitarismo pode ser vislumbrada através de duas categorias: o de ato e o de norma. Sob o prisma do utilitarismo de ato, faz-se necessário deliberar quanto ao que é certo ou obrigatório por solicitação direta ao princípio de utilidade. Isso significa dizer que é necessário situar qual das possíveis ações produzirá, em termos, maior porção de bem presumível em relação ao mal. Ajuíza-se o efeito do ato numa determinada circunstância arrolando-o ao equilíbrio geral do bem em relação ao mal. Estas são as diretrizes éticas do momento: numa situação de conflito, sopesar os prós e contras da ação humana, no condizente ao resultado esperado. A partir do utilitarismo de norma valoram-se as regras na moral, salientando-se o quanto é relevante tomar uma atitude específica em função de uma regra e não inquirindo sobre qual atitude gerará consequências melhores numa determinada situação.

As regras, aqui em relevo, devem promover o maior bem possível para o maior número possível de pessoas. A partir deste raciocínio, não há que se perguntar se determinada regra é certa ou errada, justa ou injusta, mas apenas se é legítima ou ilegítima. Sendo regra, estabelecida a partir do consenso social, deverá ser seguida. Desemboca-se, portanto, nas regras jurídicas, obrigatórias e sancionadoras da conduta humana; regras estas que exigem revisão constante, sendo a cada passo, substituídas, com base em sua finalidade. No Brasil, esta visão finalista do Direito revela suas raízes no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”

As atividades dos cientistas nas investigações biomédicas com embriões humanos acompanham as necessidades de oferecer uma melhor qualidade de vida ao grupo social, contudo seus atos devem expressar o aceite dos seres humanos envolvidos. Por tal razão, busca-se fundamento em Heller, quando afirma que o sistema de necessidades humanas deveria corresponder ao sistema de necessidades eleitas pelos humanos. Pode-se concluir dessa afirmativa que a finalidade da ação humana é, essencialmente, também o padrão de moralidade (conjunto de regras e preceitos da conduta humana) cominado pela sociedade. Alcançado este ponto, não se deve olvidar que as relações travadas entre homem e sociedade não se encontram cristalizadas através dos tempos. Ao contrário, vivificam-se, a partir das aspirações e objetivos do grupo social.

Uma sociedade que se estribe nas marcas da Justiça é aquela na qual seus pilares - as instituições – busquem a efetivação do bem-estar social, com a participação de todos os sujeitos envolvidos. É necessário afirmar que em todas as relações, individuais ou coletivas, colocam-se momentos em que os sacrifícios devem ser aceitos em função de um bem maior. Rawls corrobora ao aproveitar a ideia utilitarista: “[...] a sociedade está ordenada de forma correta e, portanto, justa, quando as instituições mais importantes estão planejadas de modo a conseguir o maior saldo líquido de satisfação obtido a partir da soma das participações individuais de todos os seus membros." (3)

No rastro dessas orientações, afirma-se que a pesquisa com embriões humanos não afronta a dignidade humana, tendo em vista que seus resultados privilegiam não somente um indivíduo em particular, mas a sociedade como um todo, e, por essa razão, a aceitação geral inviabiliza a ofensa. Atender aos interesses da maioria é, também, uma forma de se fazer justiça. Cabe, entretanto, apreciação crucial das preferências, para que não se apresentem ofensivas, onerosas ou excessivamente modestas. (4)

Nesse contexto, cabe aos legisladores estabelecerem e aos magistrados efetivarem um Direito que - cumprindo o seu fim - concretize o anseio social. A máxima que divisa o ser humano como fim em si mesmo é imprescindível na criação, interpretação e aplicação das normas jurídicas, pois este enfoque servirá de referencial ao estabelecimento de um mínimo ético a ser considerado pelo Direito. Justifica-se, assim, o paradigma do Estado Democrático de Direito, através do qual quaisquer projetos relacionados à vida humana agregam-se, com fulcro numa ordem jurídica que se curva à majestade dos Direitos Fundamentais e, em especial, à imponência ético-jurídica do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Professora Sílvia Mota
Cabo Frio, outubro de 2008


Referências


(1) Cesare Beccaria em sua obra clássica “Dos delitos e das penas” foi o primeiro a formular essa ideia, a seguir adotada por outros pensadores.

(2) RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: M. Fontes, 1997, §5, §§26-28, §30 e §54.

(3) RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: M. Fontes, 1997, p. 25.

(4) Preferências ofensivas são aquelas com forte apelo discriminatório, que envolvem desprezo por categorias ou grupos sociais, preconceitos religiosos ou raciais. Se tais preferências forem satisfeitas, as demais preferências serão tratadas de forma desigual. As preferências onerosas são as que fazem exigências excessivas aos recursos escassos. Um grupo pode ter desenvolvido o gosto por uma vida luxuosa e cara, e sentir-se-ia extremamente infeliz não usufruindo de tal vida, e enfim não é justo que alguns se privem de necessidades mais básicas para ver satisfeita tal exigência. E as preferências modestas são resultado da vivência em um meio social enfraquecido, assim, por não ter acesso a certas demandas socais fundamentais, como educação e saúde, as pessoas podem acreditar que não necessitam de mais do pouco que recebem. PELLIZZARO, Kerlly. A concepção de pessoa na teoria da justiça equitativa de J. Rawls. Dissertação apresentada à Coordenação do Curso de Pós-Graduação em Filosofia, Área de concentração em História da Filosofia Moderna e Contemporânea, Linha de Pesquisa: Ética e Política, turma 4 (2003/2005), Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Curitiba, 2006. Secretaria da Educação. Paraná: Governo do Estado, Curitiba. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/FILOSOFIA/Dissertacoes/kerlly.pdf. Acesso em: 11 maio 2008.