Seguidores

sábado, 24 de dezembro de 2005

Determinismo genético: igualdade, desigualdade e injustiça social

Síntese e adaptação de texto contido em:
MOTA, Sílvia M. L. Responsabilidade civil decorrente das manipulações genéticas: novo paradigma jurídico ao fulgor do biodireito. Tese (Doutorado em Justiça e Sociedade)–Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2005. [Aprovada, por unanimidade, no Exame de Qualificação, realizado em 15 jun. 2005. Orientador: Professor Doutor Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Membros da Banca Examinadora: Professor Doutor Ricardo Pereira Lira, Professor Doutor José Ribas Vieira e Professora Doutora Fernanda Duarte].


Introdução

Surge, atualmente, um forte temor de problemas sociais ligados à discriminação, devido à presença de uma ideologia reducionista no marco geral das investigações do genoma humano; visão esta que não somente se percebe dentro da comunidade científica, mas a transcende em direção à sociedade. A ideologia surge porque a metodologia de investigação utilizada na biologia molecular - o reducionismo metodológico ou explicativo, que abarca questões referentes à estratégia de investigação e à aquisição de conhecimentos - converteu-se numa forma de reducionismo genético, ao afirmar a possibilidade de serem explicadas e determinadas, unicamente por seus genes, todas as propriedades biológicas de um organismo.

O problema se formaliza na seguinte inquirição: encontram-se nas sequências genéticas a chave para a construção do ser humano?

Na realidade, embora um indivíduo seja resultado da interação de um genoma e um determinado ambiente, não se define somente pelo seu aparato físico, mas por seus pensamentos, suas ações ou, enfim, pela sua forma de ser humano. Desconsiderar esta exposição leva ao risco de graves problemas sociais, encenados repetidamente no palco da vida universal através dos tempos.

1 Breves antecedentes da discriminação genética

Impossível tracejar um quadro da história da genética em poucas linhas, mas alguns casos devem ser trazidos à baila, não somente com o intento de ilustrar os conflitos da nova era, mas como marco de reflexão no sentido de evitar a repetição de alguns fatos no curso da Humanidade, acentuando, dessa forma, a disseminação das desigualdades.

1.1 A pureza da raça

Nos anos vinte ou trinta do século XX, nos Estados Unidos, cresceu a evidência de que a maior parte das enfermidades físicas e psíquicas teriam como base uma deficiência genética. Grande porcentagem da sociedade parecia constituir-se por pessoas geneticamente deficientes. Ademais, difundiu-se ser mais rápida do que a reprodução dos indivíduos considerados normais, a reprodução das pessoas afetadas.

A Lei de Virgínia (Virginia Sterilization Act of 1924) converteu-se no modelo para os estatutos de esterilização em outros Estados e cerca de 50.000 pessoas foram esterilizadas nos Estados Unidos, tornando-se famoso o caso da esterilização involuntária de Carrie Buck (1906-1983), considerada deficiente mental e, portanto, perniciosa à sociedade por sua possibilidade de trazer à vida -e inundar de incapacidade o meio social- mais deficientes. O fato passou à História do Direito e aos Anais de Ciências Sociais. A saga da eugenia e do darwinismo social nos Estados Unidos e também no mundo todo, não pode ser mencionada sem referência à decisão do Tribunal Supremo no referido caso. O fato da integridade legal da esterilização obrigatória ser aceita pelo tribunal máximo em um país comprometido com a liberdade do indivíduo teve um grande impacto. Pode-se admitir, também, que a Lei de Virgínia foi o modelo utilizado como parte do programa nazista de higiene racial, pois em 14 de julho de 1933 inspirou a Lei Alemã da Esterilização. No final do primeiro ano de sua vigência, haviam sido esterilizadas mais de 56.000 pessoas declaradas defeituosas pelos tribunais de saúde hereditária. Entre 1933 e 1945, em decorrência dos programas de higiene racial de Hitler, calcula-se terem sido declaradas defeituosas e esterilizadas pelos nazistas, dois milhões de pessoas, mas não se pode olvidar serem as bases legais, sociais e científicas desta prática, em grande parte, provenientes dos Estados Unidos. (1)

A pureza da raça executada através do extermínio dos judeus, motivado pela odiosidade ínsita ao pensamento hitleriano, permanece ainda ressoante, como elemento trágico da História Universal. Em decorrência, devem-se coibir quaisquer tipos de atitudes que sugiram ameaça à liberdade dos indivíduos, a partir da sua constituição genética.

Nesse acordo mútuo, no Brasil, escrever, editar, divulgar e comerciar livros fazendo apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias contra a comunidade judaica (Lei nº 7.716/1989, artigo 20, na redação dada pela Lei nº 8.081/1990) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (art. 5º, inciso XLII da CRFB/1988). A jurisprudência nacional, em 17 de setembro de 2003, através do Superior Tribunal Federal, em majestoso acórdão, expressou:

[...] Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. [...] A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista [...] Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciliáveis com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. [...] A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem. Ordem denegada. (2)

Conquanto seja recente o motivo humano ensejador da elaboração deste acórdão, na realidade, as teorias do determinismo biológico de há muito se transformaram num importante elemento nas lutas políticas e sociais.

O começo das mais recentes explicações biológicas para os fenômenos sociais teve seu ponto de partida em 1969, quando Arthur Jensen publicou um artigo defendendo ser a maior parte das diferenças de resultados nos testes de QI entre brancos e negros, de origem genética. (3) Pretendia demonstrar a ineficácia dos programas educacionais no sentido de igualar a posição social de pretos e brancos sendo melhor educar os negros em direção às tarefas mais mecânicas para as quais os seus genes os predispunham. Este posicionamento causou um grande impacto no seio da comunidade científica. Logo a seguir, a afirmação dessa inferioridade genética dos negros estendeu-se à classe trabalhadora em geral, tornando-se popular através de Richard Herrnstein, professor de Psicologia em Harvard. (4) Também a administração de Nixon, ansiosa por encontrar justificação para cortes severos nos gastos com a assistência social e a educação, achou o argumento genético particularmente útil. Na Inglaterra, defendida pelo psicólogo acadêmico Hans Eisenck, a afirmação de diferenças biológicas de QI entre raças tornou-se parte integrante da campanha contra a imigração negra e asiática. (5)

No século passado, a década de 70 acobertou inúmeras injustiças sociais. Muitos estados americanos instituíram programas de testagem em massa da anemia falciforme entre a população negra na qual a incidência da doença atinge um em cada 400 negros e a cada ano nascem 1.500 bebês com a doença no país. Além de nada contribuírem para melhorar a qualidade da vida, discriminaram-se os portadores da doença, sendo alguns deles recusados em empregos ou impedidos de fazer seguros de saúde. A infelicidade desses acontecimentos originou a elaboração, em 1983, de um relatório sobre testes genéticos, feitos pelo corpo consultor especial da presidência dos Estados Unidos: Testagem e aconselhamento para distúrbios genéticos: Relatório Sobre as Implicações Éticas, Sociais e Jurídicas da Testagem Genética. A primeira recomendação indicava o caráter confidencial a ser atribuído às informações genéticas, impedindo o acesso de terceiros não envolvidos. A segunda desestimulava os programas compulsórios de testagem, devido ao seu limitado alcance. Demarcou-se a preferência pelos programas voluntários, exceto quando se referissem a indivíduos indefesos em situação de risco, como os recém-nascidos. Aos médicos, recomendou-se, na medida do possível, dissessem a verdade a seus pacientes. Os programas de testagem em massa só deveriam ser implantados depois da realização de estudos-pilotos bem conduzidos, nos quais se evidenciasse a compensação de sua aplicabilidade. Seriam exigíveis ao programa de testagem, cuidados e acompanhamentos ao paciente, além de serem levados em consideração para o oferecimento dos testes a frequência das doenças genéticas em diferentes subgrupos ou grupos raciais da população. Em abril de 1987, especialistas dos National Institutes of Health (NIH) recomendaram novamente a submissão de todos os recém-nascidos ao teste para detecção da anemia falciforme, mas, dessa vez, a motivação justificava-se frente à descoberta de que as crianças com menos de três anos portadoras dessa doença são menos capazes de combater infecções bacterianas e têm 15% de probabilidade de morrer de infecção nos primeiros anos de vida. A incidência poderia ser evitada pela administração de penicilina a essas crianças e os NIH recomendaram àquelas diagnosticadas positivamente o recebimento da devida medicação desde os quatro meses até os cinco anos de idade. A testagem, desta vez, cumpriu a finalidade de proporcionar algum benefício para os testados. (6)

1.2 Discriminação da mulher

Outro aspecto dos argumentos do determinismo biológico com consequências políticas diretas é a explicação da dominação das mulheres pelos homens. Estas, alvo de verso e prosa, constituíram-se sempre, desde a mais remota Antiguidade, em objeto de acirradas discussões amorosas e sociais quanto jurídicas; e terá sido a primazia histórica da expoliação à cultura sobre a moral que as converteu, em diversas sociedades, no suceder da evolução da humanidade, em escravas, objetos, criadas dos homens. (7)

Todavia, no Brasil de início do século XX, vozes esquecidas nos meandros da História sobrelevam à sua maneira o valor da mulher, num brado à igualdade entre os dois sexos e a sustentar “[...] a superioridade da Mulhér, não sob o ponto de vista em que éssa superioridade é incontestável, segundo os ensinos pozitivos, mas, por assim dizer, em qualquer terreno.” (8)

Por ocasião da discussão do Projeto do Código Civil, ignorou-se a inovação formulada por Clovis Bevilaqua no sentido de considerar a mulher absolutamente capaz na ordem civil. Contudo, os princípios de incapacidade civil da mulher extremados pelo Código de 1916 foram por demais contraditados, por exemplo, na Acta da 11ª Reunião da Commissão Revisora do Projecto de Código Civil onde consta a diferença de opiniões sobre o § 2º do art. 6º do referido Projeto.

Apesar de vigorosa manifestação a favor da mulher, em defesa da tese de Clovis Bevilaqua, o deputado Solidônio Leite assistiu sucumbirem suas palavras frente à teoria preconizadora da superioridade do sexo masculino em relação ao sexo feminino. Isso se explica justamente porque o direito positivo ainda não abordara convenientemente o confronto entre os dois sexos, incitando o orgulho varonil e apoiando-se na preeminência afetiva da mulher, fazendo-a aceitar com sacrifício e tributo, através dos tempos, o posto obscuro, que lhe fora outorgado pelo homem, em troca da liberdade de ser a zeladora do altruísmo humano.

A afirmação de diferenças básicas entre os sexos, quanto ao temperamento, capacidade de conhecimento e função social natural, tem desempenhado um importante papel na luta contra as exigências políticas do movimento das mulheres. Em relação a esse ponto, afirmava o pai da sociobiologia, Edward O. Wilson, de Harvard, mesmo na mais livre e igualitária das sociedades futuras, os homens certamente continuarão a desempenhar papel desproporcionado na vida política, nos negócios, na ciência. (9)

Essa afirmação decorre do fato do sexo feminino ser mais propenso à empatia, às habilidades verbais, sociais e de proteção, ao passo que o sexo masculino volta-se para as habilidades que requerem independência e dominação, além das atividades matemático-espaciais, integrando-se com mais facilidade às habilidades de agressão relacionadas à hierarquia e poder.

1.3 Desvios sociais

Um terceiro aspecto político do determinismo biológico tem sido a explicação dos desvios sociais e, em particular, da violência. Os motins dos negros em algumas cidades americanas, as revoltas individuais ou organizadas dos presos em todo o planeta, os crimes de violência pessoal cuja frequência vêm aumentando, contribuem para uma consciência da violência explicada com base no determinismo biológico, a especificar um processo causal suficientemente forte para justificar a defesa dos fatos.

2 O equívoco de jaez científico

Conquanto os adeptos do determinismo genético postulem que certos aspectos da personalidade humana e o comportamento dos indivíduos sejam definidos de modo incontestável pelos genes, essa posição encontra-se completamente ultrapassada. (10) Sabe-se, nos dias de hoje, que todo comportamento depende, em maior ou menor grau, de fatores genéticos e/ou ambientais que se interagem num processo assaz intrincado. A expressão determinismo genético deve ser substituída por propensão genética, tendência genética ou influência genética. Os genes estabelecem as tendências humanas, mas estas serão moldadas de acordo com as experiências particulares de cada um.

Conclusão

O atual milênio deparar-se-á com discussões sobre o racismo científico. O descobrimento de que alguns fenótipos desfavoráveis se encontram frequentemente em certos grupos étnicos ampliará as questões, podendo levar esse processo a desembocar em violentos distúrbios sociais. Tratar com discriminação uma pessoa, com fulcro na herança genética que ostenta, é uma forma de se consagrar a injustiça. Por tal razão, a exigência de igualdade eleva-se como um valor fundamental das sociedades civilizadas, constituindo-se numa aspiração basilar encontrada na raiz do conceito do Estado Democrático de Direito.

Alcançado este ponto evolutivo ímpar da Humanidade, cabe ao legislador identificar os valores sociais em ebulição, no intento de estabelecer modelos de conduta a serem exteriorizados através regras jurídicas. O comportamento do indivíduo na sociedade, este sim, delimitará a forma pela qual será abordado pelos outros indivíduos ou pelos órgãos jurídicos encarregados de manter a ordem, a paz e a segurança social.

____________________________
Notas

[1] SMITH, J. David. Determinismo biologico y concepto de la responsabilidad social: la leccion de Carrie Buck. In: FUNDACIÓN BANCO BILBAO Vizcaya (Org. e Patroc.); FUNDACIÓN VALENCIANA DE ESTUDIOS AVANZADOS (Col.). Proyecto Genoma Humano: ética. 2. ed. Bilbao: Fundación BBV, 1993, p. 172.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Constitucional. Habeas Corpus nº 82424-RS. Relator: Ministro Moreira Alves; Relator do acórdão: Ministro Maurício Corrêa. Brasília, DF, 17 de setembro de 2003. Diário de Justiça, Brasília, DF, 19 mar. 2004, p. 00017. Supremo Tribunal Federal, Brasília, DF. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 8 set. 2004.

[3] JENSEN, Arthur R. How much can we boost IQ and scholastic achivement? Harvard Educational Review, Cambridge, v. 39, p. 1-123, 1969.

[4] LEWONTIN, R. C., ROSE, Steven, KAMIN, Leon J. Genética e política. 106043/4238 ed. Tradução por Inês Busse. Mira-Sintra: Europam, 1984, p. 36.

[5] LEWONTIN, R. C., ROSE, Steven, KAMIN, Leon J. Genética e política. 106043/4238 ed. Tradução por Inês Busse. Mira-Sintra: Europam, 1984, p. 36-37.

[6] WILKIE, Tom. Projeto genoma humano: um conhecimento perigoso. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 127-129.

[7] Esse desatino chegou a levar Aristóteles, proclamado por Dante como o mestre dos que sabem, a ver-se condenado à morte, “[...] acuzado, ha mais de 22 séculos [...] por ter tributado à sua espoza as honras que érão devidas a Céres; e no seu testamento ele requereu que os réstos déssa espoza fôssem reunidos no seu sepulcro.” MENDES, R. Teixeira. (Conferência). A preeminência social e moral da mulhér: segundo os ensinos da verdadeira siência pozitiva. Rio de Janeiro: [s.ed.], 1908, p. 5. No Brasil, em 1894, Tito Livio publica a obra A mulher e a sociogenia, na qual expressa um pensamento extensamente arraigado às teses determinísticas: “Pelo volume, peso e forma o cerebro feminino é inferior ao cerebro masculino.” (CASTRO, Tito Livio de. A mulher e a sociogenia. Capital Federal: Imprensa da Casa da Moeda, 1894, p. 2). E continua mais adiante: “A superioridade cerebral do homem já se manifesta no recem-nascido, logo é uma acquisição intra-uterina, isto é, hereditaria.” (CASTRO, Tito Livio de. A mulher e a sociogenia. Capital Federal: Imprensa da Casa da Moeda, 1894, p. 11). Do início ao fim, a obra solicita uma justificativa genética no sentido de avalizar a discriminação entre os sexos: “[...] a mulher não tem mais coração que o homem, mas tem mais medula e menos cérebro; o seu typo passou por menor numero de modificações e adaptações que o do homem e por isso caracterisa-se por uma inferioridade mental de origem phylogenica, que se accentúa de mais em mais com a evolução da especie, tendo partido de um remoto tronco primata. Considerada a condição da mulher durante o período da existência da especie humana, encontra-se nessa condição a causa da inferioridade mental existente hoje. Da pre-historia á barbaria a mulher foi um utensilio vivo como ainda é o escravo nos lugares em que perdura o regimen da escravidão. Foi um animal domestico de pouco valor, porque era facil adquiril-o e domestical-o [...] A influencia da mulher sobre as gerações que se formam é nociva, porque é uma influencia do typo que não evolue [...]” CASTRO, Tito Livio de. A mulher e a sociogenia. Capital Federal: Imprensa da Casa da Moeda, 1894, p. 381-385.

[8] MENDES, R. Teixeira. (Conferência). A preeminência social e moral da mulhér: segundo os ensinos da verdadeira siência pozitiva. Rio de Janeiro: [s.ed.], 1908, p. 4.

[9] WILSON, E. O. Human decency is animal. New York Times Magazine, New York, p. 38-50, 12 oct. 1975.

[10] Ler a respeito: CALEGARO, Marco M. Psicologia e genética: o que causa o comportamento? Cérebro & Mente: revista eletrônica de divulgação científica em neurociência, Campinas, n. 14, nov. 2001/mar. 2002. Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2006.

Referências

ACTAS das Reuniões da Commissão Revisora do Projecto de Codigo Civil. Instituto da Ordem dos Advogados Brazileiros. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1906.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Constitucional. Habeas Corpus nº 82424-RS. Relator: Ministro Moreira Alves; Relator do acórdão: Ministro Maurício Corrêa. Brasília, DF, 17 de setembro de 2003. Diário de Justiça, Brasília, DF, 19 mar. 2004, p. 00017. Supremo Tribunal Federal, Brasília, DF. Disponível em:
thesoff§3=pluron§6=sjurn&p=1&r=2&f=g&l=20>. Acesso em: 8 set. 2004.

CALEGARO, Marco M. Psicologia e genética: o que causa o comportamento? Cérebro & Mente: revista eletrônica de divulgação científica em neurociência, Campinas, n. 14, nov. 2001/mar. 2002. Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2006.

CASTRO, Tito Livio de. A mulher e a sociogenia. Capital Federal: Imprensa da Casa da Moeda, 1894.

GOMES, Hélio. Medicina legal. 11. ed. Rio de Janeiro: F. Bastos, 1968.

JENSEN, Arthur R. How much can we boost IQ and scholastic achivement? Harvard Educational Review, Cambridge, v. 39, p. 1-123, 1969.

LEWONTIN, R. C., ROSE, Steven, KAMIN, Leon J. Genética e política. 106043/4238 ed. Tradução por Inês Busse. Mira-Sintra: Europam, 1984.

MENDES, R. Teixeira. (Conferência). A preeminência social e moral da mulhér: segundo os ensinos da verdadeira siência pozitiva. Rio de Janeiro: [s.ed.], 1908.

SMITH, J. David. Determinismo biologico y concepto de la responsabilidad social: la leccion de Carrie Buck. In: FUNDACIÓN BANCO BILBAO Vizcaya (Org. e Patroc.); FUNDACIÓN VALENCIANA DE ESTUDIOS AVANZADOS (Col.). Proyecto Genoma Humano: ética. 2. ed. Bilbao: Fundación BBV, 1993.

SMITH, J. David. Determinismo biologico y concepto de la responsabilidad social: la leccion de Carrie Buck. In: FUNDACIÓN BANCO BILBAO Vizcaya (Org. e Patroc.); FUNDACIÓN VALENCIANA DE ESTUDIOS AVANZADOS (Col.). Proyecto Genoma Humano: ética. 2. ed. Bilbao: Fundación BBV, 1993.

WILKIE, Tom. Projeto genoma humano: um conhecimento perigoso. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.



WILSON, E. O. Human decency is animal. New York Times Magazine, New York, p. 38-50, 12 oct. 1975.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2005

Respeito à Integridade Física e Moral na seara jurídico-genética

Professora Sílvia M L Mota
Trecho adaptado da Tese de Doutorado (2005)

Na seara jurídico-genética o respeito à integridade física e moral da pessoa humana não se pode limitar a uma concepção naturalística da pessoa que determine a sua imutabilidade genética no momento do nascimento. Defender simplesmente a existência de direitos genéticos é insuficiente, sendo necessário refletir sobre os deveres e a responsabilidade coletiva com respeito ao genoma humano.

À presente abordagem importa o enlace entre o direito à integridade física e moral da pessoa humana e a manipulação do material genético, por sugerir inúmeras polêmicas e distinguir na livre disposição do próprio corpo um caráter de instrumentalidade, através do qual a pessoa humana expressa as diligências do seu ciclo vital. Relevante, portanto, traçar as linhas doutrinárias a respeito do polêmico direito corpóreo ou direito somático referido por José Castán Tobeñas (1971, v. II, t. 1, p. 342), para somente então fazer sua imbricação com o genoma humano.

O direito ao corpo compreende o corpo vivo ou morto, em partes inteiras, ou em partes separadas. Rudolph Von Ihering (apud ESPINOLA, 1917, v. 1, p. 296) reúne em um só grupo a liberdade, a honra e o corpo, não o distinguindo dos direitos da personalidade ao escrever que a pessoa pode ser violada no que é e no que tem: “No que é: em seu corpo, em sua liberdade, em sua honra; no que tem: em suas relações com o mundo exterior. É a peripheria exterior em anthitese ao centro.” Reúne assim em um só grupo a liberdade, a honra e o corpo.

Demarcar o âmbito do direito de dispor do próprio corpo é tarefa dificultosa, senão quase impossível, basta ver as impugnações frente a quaisquer juízos que sejam escolhidos.

Para Jean Rivero (1977, v. 2, p. 81) a proteção à integridade física implica no reconhecimento do direito do homem sobre seu próprio corpo. Na mesma linha, Antonio Borrel-Maciá (1954, p. 13) reconhece ao sujeito um direito de propriedade sobre seu próprio corpo, porque isso significa a vontade de salvaguardar a sua livre atividade em face de terceiros e do Estado, não vindo, de modo algum, a conduzir ao reconhecimento de um direito de disposição.

Caio Mário da Silva Pereira (2000, p. 159) também admite a inscrição do direito ao próprio corpo no conceito de proteção à integridade física, no que se configura a disposição de suas partes em vida ou para depois da morte, “[...] para finalidades científicas ou humanitárias, subordinado contudo à preservação da própria vida ou de sua deformidade.” Até mesmo para após a morte pode a pessoa, em vida, dispor do próprio corpo (PEREIRA, 1977, p. 417). Essa proteção à integridade do corpo da pessoa humana encontra ainda respaldo nas palavras de Carlos Alberto Bittar (1995, p. 76), para quem é a pessoa “[...] a união entre o elemento espiritual (alma) e o elemento material (corpo). Este exerce, então, a função natural de permitir-lhe a vida terrena: daí porque em sua integridade deve ser conservado e protegido na órbita jurídica. Eduardo Espinola (1917, v. 1, p. 296) escrevera, há tempos, serem os direitos sobre a própria pessoa os que o homem tem sobre o seu próprio corpo.

No que se refere às partes que compuseram o corpo humano, a integridade física da pessoa é reduzida, mas permanece seu poder sobre aquelas. Daí ser possível incluí-las na disciplina dos direitos da personalidade.

Para Ricardo Antequera Parili (1980, p. 44): “O direito de disposição sobre o corpo supõe a faculdade de autorizar ou não, a separação. Este direito da personalidade [...].” Para Daisy Gogliano (1986, p. 62), a rigor não se poderia mais falar em direito da personalidade, mas os princípios que devem reger os atos que tenham por objeto as partes destacadas do corpo humano têm conexão com os direitos da personalidade e o respeito que a elas se deve tem origem no fato de terem pertencido a uma pessoa. Contra tal convergência se coloca Francisco Amaral (1998, p. 251), para quem os elementos destacados do corpo deixam de integrá-lo e, consequentemente, de ser objeto dos direitos da personalidade. Em sentido contrário, passam a integrá-lo os elementos ou produtos orgânicos ou inorgânicos que nele se assimilaram ou que nele se incorporaram, e, portanto: “[...] os enxertos e próteses, implantados e não rejeitados pelo organismo, e não separáveis do corpo sem causar a este um dano simultâneo, são objeto de direitos da personalidade e não de direitos reais.”

Abordando ainda o campo patrimonial, é pensamento de Guillermo Cabanellas Torres (1983, p. 77), que ressalvadas as aberrações transitórias, como a escravidão, nas quais coisa não se contrapõe a pessoa, não se deve classificar o corpo humano dentro do comércio. O corpo de uma pessoa viva não é coisa por se encontrar fora de toda medida de valor. Por outra parte, Gert Kummerov (1969, p. 23) manifesta que se o objeto da convenção são materiais humanos restituíveis, estes podem ser objeto de relações jurídicas patrimoniais, por exemplo, um contrato de compra e venda. Na mesma linha, H. Tristam Engelhardt Jr. (1991, p. 417-418), um dos maiores expoentes da bioética norte-americana, sustenta a moralidade da compra e venda de órgãos de pessoas vivas. Entende o autor que: “[...] certas interpretações do princípio de beneficência e certos pressupostos de fato acerca do risco de exploração de indivíduos levam a crer que a venda de órgãos dará resultados moralmente indesejáveis. Mas, as liberdades gerais de associação e de uso dos recursos particulares devem proteger tais práticas sob o aspecto moral, embora conflitantes com os postulados gerais dos costumes ocidentais [...] Já que vender-se livremente a outrem não implica violação do princípio de autonomia, essas trocas, baseadas em tal princípio, devem ser abrangidas pela esfera protegida da privacidade dos indivíduos livres. Além disso, se alguém se vender por preço justo e em condições adequadas, supõe-se que seja possível levar ao máximo o saldo ativo de benefícios em face dos prejuízos.”

Em âmbito nacional, Orlando Gomes (2000, v. 1, p. 155) admite os negócios jurídicos que tomem como objeto a separação de partes do corpo para o fim de disposição, mas salienta como limites ao poder de disposição o ato que importe na diminuição permanente da integridade física ou ao contrato atentatório da dignidade humana. Caio Mário da Silva Pereira (2000, v. 1, p. 159), igualmente, não vê impedimentos quanto à cessão, mesmo onerosa, de partes que se reconstituem naturalmente e de outras não reconstituíveis, desde que se não comprometa a vida ou a saúde do indivíduo.

Ao lado dessas reflexões coloca-se ser válido o negócio jurídico que transmite a propriedade da parte separada do corpo humano, para o presente ou futuro. Não se constatam obstáculos à disposição de parte do corpo, mesmo que ainda integrada ao todo, para produzir efeitos na época em que se configure a separação e que, consequentemente, a transforme em res. Importa, contudo, observar que se considera inválido, pois ilícito, o negócio jurídico destinado à obrigatoriedade da referida separação e, portanto, a transformação da parte do corpo em res.

A ilustrar a questão recorre-se à decisão exarada pela Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, quando expõe ser manifestamente ilegal condicionar a concessão de benefício da suspensão condicional da pena, à doação de sangue pelo condenado, a cada seis meses. Por ser o sangue parte integrante do corpo do ser humano vivo, não possui a Justiça o direito de impor-lhe qualquer destinação.

“BRASIL Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (5. Câmara). Criminal. Apelação nº 60.221-3. Relator: Desembargador Cunha Bueno. São Paulo, 9 de março de 1988, Osasco. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 629, p. 319, mar. 1988.”

Realmente, ninguém, coercitivamente, poderá ser compelido à doação, ato nobre a ser praticado por quem assim o desejar, nunca repressivamente, mesmo que a ordem tenha sido proveniente do Estado.

Conquanto se esteja a falar do corpo humano com tal afinidade, deve-se repassar as palavras de Maurizio Soldini (2002, p. 104): “[...] o homem não é um corpo; o homem constitutivamente é uma unitotalidade, somato-psíquico-espiritual” ou de Pietro Perlingieri (1997, p. 159): “Seja o perfil físico, seja aquele psíquico, ambos constituem componentes indivisíveis da estrutura humana.” Ressalta destas frases, que embora muitos autores tratem em separado os direitos à integridade física e à integridade psíquica, isto hoje não mais faz sentido, por estarem superadas as concepções que dissociam o corpo humano do espírito. Pietro Perlingieri (1997, p. 158) salienta a respeito: “[...] seria limitativo individuar o conteúdo do chamado direito à saúde no respeito à integridade física; e, isso, por duas razões. A saúde refere-se também àquela psíquica, já que a pessoa é uma indissolúvel unidade psicofísica; a saúde não é apenas aspecto estático e individual, mas pode ser relacionada ao são e livre desenvolvimento da pessoa e, como tal, constitui um todo com esta última.” Motivos possuía, portanto, Pontes de Miranda (1971, t. II, p. 28), ao considerar, ainda nos seus dias, o direito à integridade psíquica “[...] no dever de todos de não causar danos à psique de outrem [...].”

A tracejar uma linha de proteção ao indivíduo, o capítulo II do Código Civil brasileiro, concernente aos direitos da personalidade, preceitua no art. 11: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.” Nos arts. 13 a 15 o novo diploma trata do direito à integridade psicofísica, colocando o direito ao corpo entre os direitos da personalidade. Salvo por exigência médica, o art. 13 do Código Civil restringe os atos de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. O art. 14 valida a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, post mortem, se for respaldada pelo objetivo científico ou altruístico. A gratuidade ali expressa é matéria abordada na Lei nº 9.434 de 4 de fevereiro de 1997. Por outro lado, cabe expor, há certas partes que separadas do corpo humano podem constituir inquestionavelmente objeto de comércio jurídico. É o que ocorre no parágrafo único do art. 1º da mesma lei quando não compreende a transfusão de sangue, a doação de esperma e a manipulação de óvulos. Essa disposição invalida a peremptória afirmação de Clovis Bevilaqua (1921, v. 1, p. 296. Comentários ao art. 69) de que na classe das coisas excluídas do comércio está o corpo do indivíduo, pois o homem, por motivos de ordem moral, não pode ser autorizado a dispor do seu cadáver, nem de parte de seu corpo.

No Brasil estimula-se a doação do sangue através da Lei nº 7.649, de 25 de novembro de 1988 e organiza-se um sistema de coleta, processamento, armazenamento e transfusão (art. 199, parágrafo 4º da CRFB/1988), sendo proibida a sua comercialização. As técnicas para esse fim são disciplinadas pela Portaria nº 1.376, de 19 de novembro de 1993, do Ministério da Saúde.

Aceita a disposição de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para os fins estabelecidos na lei, deve ser reconhecida a revogabilidade dos atos de disposição. O arrependimento poderá ser manifestado a qualquer instante (parágrafo único do art. 14), sem que se possa invocar uma indenização por parte do doador arrependido, eis que se está diante de um ato de mera liberalidade, de caráter unilateral. O pagamento de indenização não poderá se constituir, sob nenhuma hipótese, num meio coativo para forçar a entrega. Nos casos de disposição do próprio corpo a voluntariedade da decisão é o princípio máximo. Nem mesmo o contrato de aleitamento tornaria obrigatória a separação do leite do seio da mulher.

O artigo 15 do diploma civil brasileiro dispõe acerca de tratamento médico compulsório, preceituando ser vedado constranger a pessoa humana, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. Esse dispositivo diz respeito ao Consentimento Informado tratado pela Bioética e, mais recentemente, por aqueles que propõem a criação do Biodireito.

Realizado este bosquejo pelas sendas dos direitos da personalidade, no que atinge o direito à integridade física e moral da pessoa humana, entende-se a identidade genética como parte da integridade e dignidade da pessoa humana e, como tal, parte integrante dos direitos fundamentais, a cujo respeito se lê nos versos da Constituição Federal de 1988.

A essência biológica do ser humano se deve às características assentadas no momento da concepção, conquanto não bastem por si só para constituí-lo como pessoa humana. O espírito humano é indisponível ao método científico. Sob este aspecto, a tutela da integridade da pessoa humana abrange, além do seu corpo, os aspectos psíquicos e morais que lhe dão sentido. A tutela da saúde humana é única, não podendo esgarçar-se como se possível fosse fragmentar aspectos da própria condição humana.

A união corporal e espiritual que revela o ser humano leva ao reconhecimento de que, tendo em conta a unidade substancial do corpo com o espírito, o genoma humano possui um significado que extravasa o conteúdo biológico até alcançar a dignidade antropológica, que o penetra e vivifica.

O corpo é condição necessária para asseverar a presença da pessoa humana, mas não lhe basta como explicação do ser total. Isto se coloca com a finalidade de eliminar o pensamento de que o determinismo genético deveria prevalecer, pois, valorar as pessoas através de suas características genéticas seria negar-lhe o caráter espiritual da liberdade, da vontade e da racionalidade. Por tal motivo impõe-se saber em que medida uma intervenção sobre o corpo humano ultrapassa o aspecto puramente biológico para atingir o ser da pessoa, desrespeitando sua dignidade.

A íntima relação que existe entre a pessoa e sua constituição corporal sugere a transcendência da materialidade e o culto ao ser. Ignorar esta afinidade significa ter o corpo como um instrumento, independente da pessoa e seu caráter humano. O corpo não é simplesmente a moradia da pessoa humana, mas parte integrante do seu ser, o que lhe garante o resguardo e a proteção de atos prejudiciais. Da mesma forma, reconhecer como único caráter distintivo da pessoa humana - com referência às demais espécies ou mesmo quando relacionada aos seus semelhantes - o seu próprio genoma, é antever uma porta aberta às discriminações, através da qual adentrarão os interesses dos mais fortes agindo em detrimento dos mais fracos, estes vulneráveis não somente na sua integridade física, mas também na sua própria identidade.

As divergências apresentadas neste artigo científico não se resumem a pensamentos arbitrários. Na realidade, desde que foi abolida a escravidão, em todos os países e nos diplomas internacionais, o corpo não é mais assimilado às coisas que se podem comprar e vender, desprezar ou ofender. Delinear as diferenças entre sujeito e objeto fixou-se como um dos pilares da cultura jurídica dos tempos modernos, particularmente após as novas descobertas no campo da saúde humana. Por conseguinte, aceitar qualquer tipo de discriminação que envolva o indivíduo como um todo é retroceder no tempo.

domingo, 18 de dezembro de 2005

A insuficiência do modelo principialista na saúde pública nacional

Professora Sílvia M L Mota

Síntese e adaptação de texto contido em:
MOTA, Sílvia. Responsabilidade civil decorrente das manipulações genéticas: novo paradigma jurídico ao fulgor do biodireito. Tese (Doutorado em Justiça e Sociedade)–Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2005. [Aprovada, por unanimidade, no Exame de Qualificação, realizado em 15 jun. 2005. Orientador: Professor Doutor Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Membros da Banca Examinadora: Professor Doutor Ricardo Pereira Lira, Professor Doutor José Ribas Vieira e Professora Doutora Fernanda Duarte].
*************************************************

Notas introdutórias

No Brasil, verifica-se que a grande maioria dos conflitos éticos entre médico e paciente são gerados em decorrência da exclusão social e deficiência dos serviços de saúde. Determinados pacientes necessitam de equipamentos e/ou medicações essenciais à manutenção das suas vidas, que não lhes são oferecidos adequadamente. Nesses momentos, percebe-se que as características histórico-culturais dos povos, sinalizam para a dificuldade de trabalho social com fulcro em paradigmas morais comuns e abrem-se espaços para novas reflexões e consequentes ações no âmbito da Saúde Pública.
A partir desse intróito, pode-se afirmar que os problemas morais expostos pela Saúde Pública originam um problema crucial: os instrumentos desenvolvidos pela Bioética são suficientes para enfrentar os principais dilemas morais decorrentes dos programas e práticas da Saúde Pública?

Essa tensão, própria da aplicação da Bioética à Saúde Pública, é relevante, porque se posiciona no centro da definição das políticas públicas de saúde. Numa extremidade, denota-se um esforço dirigido a melhorar o estado de saúde da população, o que diminuirá a carga de enfermidades futuras, constituindo-se em economia de dinheiro público; na outra, consolida-se a generalização de uma cultura sanitária uniforme, afastada das particularidades e contígua à imposição de um modelo sanitário de conduta. Em sua evolução, tanto a Ética Médica quanto a Bioética e, posteriormente, a Saúde Pública, chegam a um ponto de incidência. Essa metodologia se expressa através de um conflito entre os princípios bioéticos, devido às incoerências surgidas a partir dos interesses individuais e sociais. Portanto, a procura por novos paradigmas valorativos faz-se necessária.

Desenvolvimento

A Saúde Pública é a ciência e a arte de promover, proteger e recuperar a saúde através de medidas de alcance coletivo e de motivação da população (PHILIPPI JÚNIOR, 1988, p. 3-39). Os princípios bioéticos, por sua vez, constituem-se em linhas éticas refletoras das interações entre os indivíduos. Contudo, devem ser analisados como um todo integrado e dinâmico e não sob a observância exclusiva de um. Se, por exemplo, o Princípio de Justiça for destacado dos demais poderá, segundo Vicente Barretto (1998, p. 33): “[...] transformar-se na sua própria caricatura nas mãos da burocracia estatal, sob a forma de paternalismo e clientelismo político.”

Investigar esses princípios no âmbito da Saúde Pública, significa uma forma prática e útil de examinar as questões bioéticas, mas não se pode perder de vista os seus limites. Determinadas concepções não poderão ser impostas coativamente ao paciente, mesmo que pressuponham a ideia de igualdade. Abrigar a todos sob o manto da igualdade é a essência do Princípio de Justiça que, aliado à Beneficência e Autonomia, configura um mínimo ético estabelecido com a intenção de abordar os conflitos surgidos das novas descobertas no campo da saúde humana. Esses princípios são acolhidos pelos pensadores europeus, embora não seja possível tantas vezes atingir um ponto em comum com seus respectivos conteúdos.

As novas vicissitudes na área da genética abarcam problemas éticos a sugerirem um mínimo digno de cuidados com a saúde, supostamente garantidos pelo Estado e suas instituições políticas e jurídicas. Em nível de atenção médica individual devem-se utilizar os recursos de tal modo que se ofereça cobertura equânime e se evitem desproporções que deixem necessidades fundamentais a descoberto.

Fermin Roland Schramm e Miguel Kottow (2001, p. 951) alinharam algumas críticas à redução da moralidade em Saúde Pública no âmbito da ética biomédica: descuida a especificidade dos problemas enfrentados pela Saúde Pública, preocupada tanto com a prevenção de morbilidades em populações humanas como da promoção em saúde e da qualidade do ambiente biológico, psicológico e cultural; e reduz a complexidade das reclamações entre Biomedicina Clínica e Saúde Pública, a qual implica em que nem tudo aquilo que é relevante ao âmbito bioético clínico o é também sob o ponto de vista da ética em Saúde Pública.

Na Saúde Pública, labora-se com riscos e burocracias difíceis de serem quantificados e isto dificulta até mesmo a fixação de guia moral através do modelo principialista. Dessa forma, surge a necessidade de se trabalhar com uma ética específica para a Saúde Pública, enraizada em outros princípios como o da solidariedade e o da responsabilidade.

Serão esses, realmente, suficientes?

Na Constituição brasileira, de 1988, o Princípio de Solidariedade, também conhecido como Princípio de Integração ou Princípio de Solidariedade Comunitária, está apregoado, inicialmente, no seu Preâmbulo: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar [...] uma sociedade fraterna.” Encontra-se, também, inserido no art. 3º, incisos I e III, ao situar que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são construir uma sociedade livre, justa e solidária; e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Apregoa, ainda, a Carta Magna nacional, o princípio em tela, em diversos outros dispositivos, entre esses: art. 159, inciso I, alínea “c”; art. 43 e todos seus parágrafos e incisos; art. 151, inciso I; art. 159, inciso I, alínea “c”; art. 165, parágrafos 6º, 7º e inciso II do parágrafo 9º; art. 170 e seu inciso VII; caput do art. 192 e seu inciso VII; artigos 194 e 195; além dos direitos sociais previstos nos arts. 6º ao 11, assim como o parágrafo 10 do art. 34 das Disposições Constitucionais Transitórias.

O Princípio de Solidariedade diz respeito à defesa dos direitos de igualdade de tratamento, dos interesses coletivos, supra individuais, gerais ou públicos.

Como princípio jurídico, Javier de Lucas (1993, p. 29) entende assim a Solidariedade: “[...] consciência conjunta de direitos e obrigações, que surgiria da existência das necessidades comuns, de similitudes (de reconhecimento de identidade), que precedam às diferenças sem pretender sua alienação.” Tal linha de pensamento busca, no âmbito da Saúde Pública, um atendimento médico ao mesmo tempo equitativo e sustentável e isto origina infindáveis críticas, particularmente quando está em foco a liberação de verbas, reconhecidamente escassas em qualquer sistema sanitário.

Nesse anfiteatro, Angela Maria Rocha Gonçalves de Abrantes (2004, p. 133) ressalta que, para implementar alguns dispositivos constitucionais, o Brasil possui os chamados fundos constitucionais compensatórios, mecanismos de proteção às regiões nordeste/norte/centro-oeste “[...] que visam minimizar as desigualdades econômicas e sociais ali existentes, reduzir a pobreza e acabar com os desequilíbrios existentes, ao tempo que objetivam patrocinar e incentivar o desenvolvimento dos Estados das citadas regiões.”

O Princípio de Solidariedade demonstra estar o prejuízo da sociedade intimamente ligado à vulnerabilidade de cada um dos seus membros, e, por tal razão, recomenda a reunião de todos para a suavização de infortúnios e defesa de agressões, constituindo-se um sistema protetivo organizado em conjunto para a proteção do bem comum. Implícita na solidariedade está a igualdade, tanto de esforço realizado como de proteção obtida “[...] e ali onde esta simetria se rompe, aparecem os abusos e as desproteções dos mais débeis” (SCHRAMM; KOTOW, 2001, p. 951).

Como se percebe, o Princípio de Solidariedade aplicado isoladamente às políticas públicas, queda-se precário para resolver os complexos problemas de saúde, porque se apregoa a solidariedade em situações de profunda diversidade de necessidades, independente das discrepâncias de valores colocadas avessas à argumentação.

Entra, portanto, na pauta da cogitação aqui originada, outro princípio a ser considerado como possível instrumento apropriado para a análise de questões morais em Saúde Pública: o Princípio de Responsabilidade, cujas diversas acepções têm em comum a necessidade de cuidar de outro ser humano quando o mesmo se encontrar ameaçado em sua vulnerabilidade.

É necessário, neste momento, recuperar a origem do vocábulo ética, cujo sentido primeiro é de refúgio e proteção.

No panorama atual, em sua obra “O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para uma civilização tecnológica”, Hans Jonas (2006, p. 93) pergunta-se sobre a possibilidade de uma ética, a qual, sem o restabelecimento da categoria do sagrado, destruída pelo Iluminismo, possa controlar os poderes extremos conferidos ao ser humano pelo domínio da técnica. Com esse excesso de poder às mãos do ser humano, torna-se premente um novo devir ao espectro da ética, cuja missão o ser humano, enquanto administrador e guardião da Natureza e não mais como dominador, se impõe como indispensável, porque o primeiro imperativo assevera: “[...] que exista uma humanidade”. A responsabilidade de cada um e de todo ser humano torna-se uma, aqui e agora, mas também com vistas ao futuro da humanidade - uma responsabilidade exigente. Portanto, continua o filósofo: “[...] não é verdade que possamos transferir nossa responsabilidade pela existência de uma humanidade futura para ela própria, dirigindo-nos simplesmente aos deveres para com aquela que irá existir, ou seja, cuidando do seu modo de ser.” (JONAS, 2006, p. 93-94). Salienta a importância da preservação da capacidade de responsabilidade, reconhecendo-a como marca da autenticidade humana no futuro, de forma a ser um exercício livre e responsável de escolha sobre si mesmo e que tal exercício não seja somente um dever pela sua existência própria, mas pela existência da vida, reconhecendo o outro de si enquanto ser humano e enquanto a biosfera, isto é, o outro na compreensão cósmica.

Hans Jonas considera que a nova teoria ética inaugurada a partir do seu Princípio Responsabilidade não corresponde absolutamente à ideia tradicional de direitos e deveres, portanto, em uma perspectiva de reciprocidade: “[...] segundo a qual o meu dever é a imagem refletida do dever alheio, que por seu turno é visto como imagem e semelhança de meu próprio dever” (JONAS, 2006, p. 89). Sendo assim, a ética da responsabilidade “[...] tem de ser independente tanto da ideia de um direito quanto da ideia de uma reciprocidade” (JONAS, 2006, p. 89). Em se tratando da urgência de cada um assumir responsavelmente sua ação na Terra (JONAS, 2006, p. 47), uma das principais preocupações a respeito da técnica moderna dá-se a partir do reconhecimento do alcance que a mesma tomou com relação ao seu potencial e aos seus efeitos possíveis. O excesso de poder técnico engendra uma dinâmica que resulta em novas relações com toda a vida da biosfera, tanto em questões de como se decide vivê-la, como também de poder decidir em como deixar de existir nesse plano. Diante desse entrecruzamento de possibilidades, Hans Jonas ressalta que o agir humano precisa estar voltado para um novo tipo de sujeito atuante.

Percebe-se, pois, que Hans Jonas assenta na base da sua ética o dever de responsabilidade com a totalidade do ser, preservando-o dos processos de aniquilamento. Isso corresponde a atuar de modo a não permitir sejam os atos adotados devastadores para as futuras possibilidades de uma vida digna sobre a Terra. O novo imperativo moral adequa-se mais a uma política pública que ao comportamento privado: “O sacrifício da própria vida para salvar outros, pela pátria ou por causa da humanidade é uma opção para o Ser, não para o não-ser.” (JONAS, 2006, p. 100)

De acordo com Fermin Roland Schramm e Miguel Kottow (2001, p. 951), ao menos três considerações tornam impraticável a proposta de Hans Jonas. Em primeiro lugar, a responsabilidade enquanto princípio moral se refere a seres identificáveis e isso não ocorre no caso em estudo, pois as instituições destinam seus esforços a uma população nem sempre claramente delimitada. Hans Jonas requer a responsabilidade com um ser da natureza e das futuras gerações, na busca de assinalar responsabilidades por tudo o que acontece no mundo e isso se transforma numa forma utópica de responsabilidade. Em segundo lugar, Hans Jonas destaca a responsabilidade em situações de incerteza, a exemplo daquelas reminiscentes da nova biotecnologia, carentes de posicionamentos prudentes. Contudo, notabiliza o estudioso, uma política de reserva de inversão no desenvolvimento tecnológico, implicaria consequências incalculáveis para a sociedade, começando pelo desemprego maciço e, sob o ponto de vista dos recursos em saúde, pela menor cobertura para os mais desprotegidos. Consequentemente, essa solução é inadequada para responder às ações de saúde coletiva. Em terceiro lugar, evidencia-se a questão da confiabilidade de técnicas de diagnóstico e prognóstico desenvolvidas no campo da biotecnologia e sua aplicação no âmbito da Saúde Pública. Nos casos de lesão, difícil detectar os liames causais entre atos individuais e consequências coletivas, a fim de imputar responsabilidades. Nesse campo, a Bioética tem sido insatisfatória. Por tais razões parece plausível substituir o Princípio de Responsabilidade pelo Princípio de Proteção, no mínimo, viável.

O Princípio de Proteção baseia-se na função estatal de resguardar a integridade física e patrimonial dos cidadãos. Significa proteção e cobertura das necessidades essenciais, através das quais o afetado possa atender a outras necessidades e/ou outros interesses.
Mais uma vez, Fermin Roland Schramm e Miguel Kottow (2001, p. 953), indicam as seguintes características: gratuidade, no sentido de não existir um compromisso a priori de assumir atitudes protetoras; vinculação, no sentido de que uma vez livremente assumida se converte em um compromisso irrenunciável; cobertura das necessidades entendidas a partir do afetado. Segundo os autores, o Princípio de Proteção não se reduz ao da Beneficência ou a algum tipo de paternalismo.
A legítima moral da beneficência depende da avaliação do afetado, único a decidir se um ato será para ele beneficente. No caso do paternalismo é o agente quem decide o que é beneficioso para o afetado, independentemente ou ainda contra a opinião do afetado. Por tanto, estes princípios diferem substancialmente do que entendemos por proteção.
[...]
A ética de proteção deve ser entendida como um compromisso prático, submetido a alguma forma de exigência social, com o qual a proteção se transforma num princípio moral irrevogável, posto que agentes, afetados, tarefas e consequências devem ser bem definidos. (SCHRAMM; KOTOW, 2001, p. 953).
As relações entre indivíduos e sociedade, entre o “subjetivo e o objetivo” (DARRAS, 2004, p. 231) devem ser identificadas. Não deixa, aliás, de ser proeminente situar o poder de persuasão e coerção nas intervenções da Saúde Pública, além de identificar os riscos e combater a discriminação.

Notas finais

A exigência de igualdade na Saúde Pública deve ser compreendida num sentido relativo, através da reivindicação de tratamento igualitário aos iguais. Isso exige a configuração de uma padronagem de balanceamento a ser aplicado como um pré-requisito à definição da categoria cujos membros devem ser tratados com igualdade.

Como se pode perceber, por seu desenvolvimento próprio, Bioética e Saúde Pública aproximam-se. A tutela sanitária deve ser avaliada como aspiração de cuidar da cidadania, prevenindo as enfermidades e promovendo um meio ambiente saudável. Portanto, princípios originários do anfiteatro bioético tornam-se insuficientes, mas embora o sejam, ao menos tracejam caminhos para a afirmação de um Biodireito.

Referências

ABRANTES, Angela Maria Rocha Gonçalves de Abrantes. O princípio da solidariedade e o direito econômico. Publicação original: Revista Eletrônica Prim@ Facie, ano 3, n. 4, p. 127-139, jan./jun. 2004. E-gov: portal de e-governo, inclusão digital e sociedade do conhecimento, Santa Catarina. Disponível em http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/31968-374.... Acesso em: 6 out. 2016.

BARRETTO, Vicente de Paulo. Bioética, biodireito e direitos humanos. Ethica: cadernos acadêmicos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 9-50, 1998.

DARRAS, Christian. Bioética y salud pública: al cruce de los caminos. Acta Bioethica, Santiago, Chile, ano X, n. 2, p. 227-232, 2004. Disponível em: http://www.paho.org/Spanish/BIO/acta10.pdf. Acesso em: 10 jan. 2005.

JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para uma civilização tecnológica. Rio de Janeiro: PUC Rio, 2006. 354 p.

JONAS, Hans. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. Tradução do grupo Hans Jonas da ANPOF. São Paulo: Paulus, 2013. (Coleção Ethos). Título original: Technik, Medizin und Ethik: Zur Praxis des Prinzips Verantwortung.

LUCAS, Javier de. El concepto de solidaridad. México: Fontamara, 1993. 125 p. (Biblioteca de Ética, Filosofia del Derecho y Política, 29).

PHILIPPI JÚNIOR, Arlindo. Águas de abastecimento. In: PHILIPPI JÚNIOR, Arlindo. (Org.). Saneamento do meio. São Paulo: Fundacentro, 1988, p. 3-39.

SCHRAMM, Fermin Roland; KOTOW, Miguel. Bioethical principles in public health: limitations and proposals [Princípios bioéticos em salud pública: limitaciones y propuestas]. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 949-956, jul./ago. 2001.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2005

Relativização da liberdade humana

Síntese e adaptação de texto contido em:
MOTA, Sílvia M. L. Responsabilidade civil decorrente das manipulações genéticas: novo paradigma jurídico ao fulgor do biodireito. Tese (Doutorado em Justiça e Sociedade)–Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2005 [Aprovada, por unanimidade, no Exame de Qualificação, realizado em 15 jun. 2005. Orientador: Professor Doutor Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Membros da Banca Examinadora: Professor Doutor Ricardo Pereira Lira, Professor Doutor José Ribas Vieira e Professora Doutora Fernanda Duarte].

No contexto social, a liberdade “é uma conquista” e se impõe ao homem como de sua responsabilidade. Essa ausência de princípios norteadores da ação destaca-se na passagem da obra "O Existencialismo é um Humanismo", no qual um jovem pergunta a Jean Paul Sartre se deve ir para a guerra ou cuidar da mãe. Responde o filósofo, não existir uma regra, um valor, um modelo, mesmo uma resposta correta ou um conselho exterior, a servir de parâmetro para a ação. Ensina ser de total responsabilidade do jovem essa opção, por ser livre na eleição dos seus próprios valores. Não existindo valores universais a lhe servirem de paradigma, cabe ao homem engendrar os próprios valores que nortearão suas ações na vida. E, por assim ser, não existem valores éticos universais para a vida humana, mas somente a construção real e individual dos valores.

Esse pensamento leva à seguinte verificação: em Sartre, para atingir um fim/objetivo, é lícito usar de quaisquer meios?

As ações livres dos homens trilham a um fim determinado. Mas, na perspectiva sartriana, este objetivo está ameaçado pelo Outro, o qual, embora necessário, é também um mal. Coexistem, portanto, Eu e o Outro, duas liberdades que se afrontam e tentam mutuamente paralisar-se através do olhar. No meio social, o convívio Eu-Outro se constitui num embate pela supremacia da liberdade. Ao perceber-se inapto para uma identificação objetiva à consciência do Outro, será o homem conduzido a volver os olhos deliberadamente para o Outro. Por essa atitude avoca a própria liberdade, tentando ultrajar a liberdade do Outro. Dessa forma, o alvo do conflito será trazer a lume a luta de duas liberdades confrontadas enquanto liberdades. O Outro é um mal porque a sua liberdade demarca a liberdade própria do Eu e, mais ainda, é um mal indissociavelmente arraigado ao homem, pois o Outro faz parte do seu Eu, da sua consciência e da sua ação. Intentando satisfazer seus desejos e sua liberdade, o homem faz do Outro um meio, um mero objeto da sua livre ação. Mas, estabelece-se a recíproca e a liberdade do homem se desumaniza tornando-se um objeto do Outro e fazendo do Outro, igualmente, seu objeto. Impõe-se uma relação de senhor do Outro em relação ao homem, que passa a se sentir indefeso frente ao julgamento da consciência. O Outro é seu juiz e seu senhor. Não existe refúgio, pois em qualquer lugar o Outro se imporá, mesmo na sua solitude, porque o Outro está cristalizado no seu próprio cérebro.

Nas ações voluntárias dos homens, o Outro aparece como um Mal por impor limites à liberdade de ação humana e um Bem por constituir-se num meio para seus fins. Dessa forma, afirmar a liberdade implica na sobreposição ao Outro, transformando o homem num objeto da própria liberdade. Contudo, como assinala Jean Morange, a liberdade humana não é absoluta: “É banal afirmar que nenhuma liberdade pode ser limitada. Mesmo aos olhos dos liberais mais extremistas, a liberdade de cada um deve terminar onde começa a liberdade do outro.” O ser humano, no gozo de sua liberdade, pode decidir-se por um determinado projeto de vida. Mas, embora seja único e irrepetível, não se encontra exilado no mundo, fechado em si mesmo. O homem convive com os demais, é um ser coexistencial. Neste sentido, declara Carlos Fernández Sessarego: “A existência é coexistência.”

Sob um ponto de vista histórico, interessante trazer a famosa distinção de B. Constant entre a liberdade do mundo antigo e a liberdade dos tempos modernos, referindo-se a modelos de liberdade que respondem a conquistas de etapas históricas concretas e aplicáveis a diferentes tipos de convivência social; ou a diferenciação de Imannuel Kant a dois usos de liberdade: um negativo, incorporado à capacidade do ser humano de agir independentemente de quaisquer outras causas para além da sua própria vontade ou razão prática - a independência a respeito de um objeto desejado; outro positivo, referente ao poder causal da razão em se autodeterminar, permitindo-lhe agir autonomamente, apenas com bases racionais. Isto significa a determinação do livre arbítrio pela simples forma legisladora universal. Assim, ser livre é ser moralmente responsável. Segundo Imannuel Kant, vontade livre e vontade submetida às leis morais são uma e a mesma coisa. Dennis Lloyd traça também a distinção entre a liberdade positiva e a liberdade negativa, enlaçando a última à organização do modelo de sociedade de tal modo que, independente de todas as sujeições impostas à ação individual em relação à sociedade como um todo, subsiste uma esfera para a escolha e a iniciativa individuais, alargada em conformidade ao bem-estar público. A liberdade positiva, por outro lado, muito mais próxima de uma concepção espiritual, subentende alguma espécie de oportunidade máxima para a auto-realização de cada indivíduo, até que atinja sua plena capacidade como ser humano.

No rastro do exercício livre da vontade humana, não se pode olvidar, os fins não justificam os meios. Neste sentido alerta Imannuel Kant que: “[...] o homem – e, de uma maneira geral, todo o ser racional – existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade.”

Essa divagação pelo mundo filosófico, fixa alguns pontos fundamentais. A liberdade é a condição da existência humana; o homem é incondicionalmente livre, pode escolher livremente o que fazer. Não obstante, essa liberdade poderá limitar-se pelo medo, levando-o a abdicar de certas escolhas por receio à repressão religiosa, moral ou jurídica. Mas, a liberdade em si estará sempre presente e, sobrepondo-se ao medo, será executada. Por tal motivo - sendo um poder do homem - a liberdade sem freios arrisca-se a transformá-lo num asselvajado, o que importará na opressão dos fracos pelos fortes e na ausência de toda liberdade dos primeiros.

Na realidade, o nascedouro do conflito é a intolerância do homem frente ao exercício da sua própria liberdade. Daí a necessidade do estabelecimento de regras jurídicas para reger o desenvolvimento e a atuação do ser humano no corpo social.

REFERÊNCIAS

CONSTANT, B. De la libertad de los antigos comparada com la de los modernos: escritos políticos. Tradução M. L. Sánchez Mejía. Madrid: CEC, 1989.
FERNÁNDEZ SESSAREGO, Carlos. Libertad y genoma humano. In: EL DERECHO ante el Proyecto Genoma Humano. Tradução José Gerardo Abella. Bilbao: Fundación BBV Documenta, 1994. v. I.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução Alex Marins. São Paulo: M. Claret, outono 2002.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução Alex Marins. São Paulo: M. Claret, outono 2002.
LLOYD, Dennis. A ideia de lei. 2. ed. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: M. Fontes, 2000.
MACEDO, Ubiratan Borges de. A ideia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1997.
MORANGE, Jean. Droits de l’homme et libertés publiques. 3. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1995.
SARTRE, Jean Paul. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1999.