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terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Termo de Consentimento Informado: relação médico-paciente

Professora Sílvia M L Mota

Considerações iniciais

Quantas vezes ouve-se (ou faz-se) a pergunta: "Se tenho medo de ir ao médico, o que faço?" O que fazer quando existe a imperiosa necessidade de consultar um profissional na área da saúde, mas as histórias desvendadas ao sabor da mídia, ou a experiência de familiares e amigos e, até mesmo, a experiência própria, são fantasmas que fazem temer aqueles nos quais se deveria confiar nos momentos de fraqueza física ou moral?

Para exorcizar este medo é necessário conhecer os próprios direitos. É preciso saber que nenhuma intervenção poderá ser realizada ao corpo humano, se o paciente não permitir. É preciso escolher bem o profissional (o que se torna impossível na Saúde Pública, na qual não se tem escolha). É necessário confiar.

No exercício da medicina nada há de mais importante que a relação médico-paciente, constituindo-se na base de toda a estrutura sanitária que inexistiria sem o estabelecimento desta relação iniciada no momento em que uma pessoa com um problema relacionado à saúde física ou moral - o paciente - socorre-se a outra - o médico, com a convicção de que será ajudada. Não obstante, esta relação modificou-se com o decorrer dos tempos.

A tradicional moral de beneficência, vigente desde os tempos de Hipócrates, com sua carga de paternalismo (aos pacientes havia que defendê-los da verdade), deixa lugar à moral da autonomia, que se caracteriza por uma difusão da filosofia da liberdade dos pacientes para que possa tomar decisões referentes à sua enfermidade. Não mais se permite ignorar a influência que o consentimento informado exerce na apreciação do caso em concreto, desde o dever profissional de ser observado até alcançar o respeito à autonomia do paciente.

Conceito e natureza jurídica

Conceituar o Termo de Consentimento Informado é relevante para que se possa traçar suas características próprias. Para além disso, é preciso delimitar qual sua natureza jurídica, sob o pretexto de contextualizá-lo no mundo jurídico. O Consentimento Informado é um acordo de pessoas para permitir que alguma coisa aconteça baseada numa completa revelação de fatos necessários para fazer a decisão inteligentemente; isto é, conhecimento dos riscos envolvidos, alternativas, entre outros.

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001, p. 807), assinala sobre o termo consentimento: “[...] ato ou efeito de consentir. 1 – manifestação favorável a que faça; permissão, licença. 2 – manifestação de que se aprova; anuência, aquiescência, concordância. 3 – tolerância, condescendência. 4 – uniformidade de opiniões; concordância de declarações, acordo de vontades das partes para se alçar um objetivo comum."

A relação médico-paciente mudou através dos tempos. O novo aparato técnico científico colocado à disposição das pessoas muda o comportamento do paciente, despertando-lhe a ânsia por descobrir seus direitos e de se portar como titular de autodeterminação em relação ao seu próprio corpo. Desta forma, é necessário que o profissional da medicina proporcione ao paciente sob seus cuidados os indicadores essenciais de conhecimento e compreensão a respeito da terapia indicada para seu mal, para que tenha subsídios de optar livremente.

Sobre o tema Rodrigues (2001, p. 17-18) ensina: “Sempre que os outros não lhes mintam ou não os privem de informação, os seres humanos com maturidade suficiente devem, em princípio, ter o direito de tomar as decisões que vão definir as suas próprias vidas, eventualmente até realizando más opções. Autonomia não significa solidão. Se é verdade que cabe ao paciente decidir sobre a intervenção médica, não é menos verdade que, informado, ele não decidiu sozinho. Por contrapartida, onde não haja consentimento, surge a suspeita de uma manipulação arbitrária por parte do médico.

Tendo em vista a relevância desta matéria na atualidade, tanto a jurisprudência nacional quanto a estrangeira colocam que a ausência do consentimento informado é ensejo de responsabilização civil, independentemente do sucesso ou insucesso do tratamento de saúde.

**MADRID. Audiencia Provincial de Madrid. Sección 21ª. Sentencia de 5 de febrero de 2001. Ponente: Ilmo. Sr. D. Guillermo Ripoll Olazábal. Contenido: Inexistencia de Negligencia Profesional. Regla General de Consentimiento Previo. Excepción: cuando el paciente no esté capacitado para tomar decisiones cuando la urgencia no permita demora por poder ocasionar lesiones irreversibles o peligro de fallecimiento. Responsabilidad del Insalud (ROBERTO, 2006, p. 89).

Entende a literatura especializada, não ser a natureza jurídica do consentimento informado um contrato de prestação de serviço de saúde, mas um ato jurídico voluntário com consequências decorrentes da determinação legal, como o direito à autodeterminação e o direito à disposição do próprio corpo, dispostos nos artigos 13 e 15 do Código Civil de 2002. Portanto, somente surtirá os efeitos pretendidos em função da relação estabelecida de prestação de serviços de saúde.

Embora o Código Civil não disponha sobre o contrato de prestação de serviços de saúde, especificamente, disciplina nos artigos 593 a 609 os contratos de prestação de serviços que se sujeitem às leis trabalhistas ou lei especial, como é o caso em referência.

O consentimento informado é uma manifestação de vontade do paciente que concorde com a terapia, após ser suficientemente informado dos riscos e benefícios.

No concernente ao entendimento do consentimento como ato jurídico em sentido estrito é relevante a distinção efetuada pela jurisprudência francesa, desde a decisão da Cour de Cassacion de 29 de maio de 1951, entre o consentimento inicial, concomitante com o contrato de prestação de serviços médicos e a necessidade de antes de cada intervenção ou tratamento o médico obter o consentimento informado do paciente. Salienta-se que o consentimento concedido pelo paciente na esfera médica é duplo. Num primeiro momento, há o consentimento-aceitação, que permite a conclusão de um contrato médico, pois todo contrato supõe um consentimento válido das partes. Em segundo lugar, há o consentimento para tratamento praticado, que representa o corolário do direito do paciente a fazer respeitar a sua integridade física e a dispor do seu corpo (PEREIRA, 2004, p. 137-138).

Roberto (2006, p. 95) também considera o documento um ato jurídico em sentido estrito, pois, diferentemente do negócio jurídico não gera direitos para a outra parte. Sendo assim, ressalta o autor: “Se o paciente revogar o consentimento, nenhum direito terá o profissional de saúde quanto ao ato jurídico, tão-somente quanto ao contrato de prestação de serviços, que, mesmo rescindido unilateralmente pelo paciente, gera o direito do fornecedor de cobrar os honorários devidos.”

Dados históricos relevantes

Independente de ser constatada divulgação isolada de sentença condenatória por falta de informação no século XVII, na Inglaterra: Slater frente a Baker Versus Stapleton, foi nos EE.UU. onde mais se desenvolveu esta questão, inicialmente no século XIX: Carpenter Versus Blake e Wells Versus World's Dispensary Medical Association, embora apenas no princípio do século XX se tenha falado de autodeterminação num caso histórico.

No âmbito da contenda, a prática médica sugere como regra norteadora a procura do bem, desejando a proteção e bem-estar do paciente. A este respeito, provoca as mentes inquietas o reverberar de Moore (1971, p. 3-5): “O que é bom? O que é mau? Dou nome de ética à discussão dessa questão” e “a pergunta sobre como deve definir-se ‘bom’ é a questão mais importante de toda a ética.”

Cabe ressaltar que Hipócrates já ensinava a prática do bonum facere (fazer o bem) associada ao primum non nocere (nunca fazer o mal), com o escopo de promover a Justiça. A atitude hipocrática e a autoridade de Esculápio, mais moral do que jurídica, consideravam o paciente como um sujeito incapaz de tomar decisões autônomas. Esta lacuna no Juramento de Hipócrates ocorre, de acordo com Muñoz e Fortes, porque “[...] o Juramento espelha a moral médica no apogeu do período clássico da cultura grega na Antiguidade (final do século V e século IV a.C.), tendo sido feito por médicos e para médicos.”

São os princípios referidos por Hipócrates consagrados universalmente sob a denominação de beneficência, não-maleficência e justiça, aos quais, somente na atualidade, junta-se o então decantado princípio da autonomia, que constitui o elo da pessoa humana com o valor mais abrangente da sua dignidade: a própria liberdade que lhe deve ser resguardada.

O princípio da autonomia autoriza ao paciente tomar suas próprias decisões, justificando o atuar do profissional ao estabelecer a regra geral de que toda intervenção médica não prescinde do consentimento prévio e informado do paciente.

A este respeito, Mill (1952, v. 43, p. 273) escreveu apropriadamente: "Não é livre nenhuma sociedade em que tais liberdades não são, como um todo, respeitadas, seja qual for a sua forma de governo [...] Cada qual é o guardião correto de sua própria saúde, seja ela física, seja mental, seja espiritual. A humanidade é que mais lucra ao permitir que cada um viva como bem lhe parecer, em vez de compelir cada pessoa a viver como parece ser bom para os demais." Portanto, dois são os pressupostos a legitimar a intervenção médica: que se leve a termo de acordo com as regras da lex artis e que seja consentida pelo paciente.

O que é a Lex artis?

Lex artis - lei da arte - é o conjunto de regras técnicas ou procedimentos aplicáveis a casos típicos ou semelhantes que socorrem o profissional da medicina, quando analisado o cuidado objetivo a ser observado no desempenho do seu labor. Consiste no critério chave para determinar a existência ou não da responsabilidade médica, situando-se no centro argumental e probatório dos juízos de responsabilidade médica investigar se houve ou não seu cumprimento.

O conceito de lex artis, não sendo recente é, todavia, de uso contemporâneo, utilizado insistentemente dentro do contexto da responsabilidade do profissional. Refere-se à execução do ato médico no marco dos critérios e procedimentos admitidos em um determinado tempo e lugar, numa situação historicamente concreta. Não se trata, contudo, salienta Rodríguez Almada (2001, p. 19), de valorar como deveria atuar o melhor médico em condições ideais, nem se deseja um ato médico correspondente ao propugnado por escola majoritária.

No conceito de lex artis, é cada vez mais saliente a impregnação de componentes éticos e indissolúveis da ideia de uma boa relação médico-paciente, não bastando o cumprimento dos aspectos estritamente técnicos do ato médico. Assim, um procedimento cirúrgico de coordenação corretamente indicado, oportuna e tecnicamente bem executado, não se ajustará à lex artis se o profissional não cumprir com o dever da informação, incluíndo riscos, alternativas terapêuticas, entre outras (GARCÍA DE LA SERRANA, 2004). Tampouco se poderá alegar que seja a atuação do médico de acordo com a lex artis, se não registrou adequadamente o procedimento na história clínica ou se infringiu o princípio ético e jurídico da confidencialidade.

A lex artis constitui-se, portanto, em critério valorativo da correção do concreto ato médico executado pelo profissional da Medicina – Ciência ou Arte Médica. Este juízo crítico considera as especiais características do seu autor, da profissão, da complexidade e transcendência vital do ato, e, neste caso, da influência de outros fatores endógenos, para qualificar o ato médico conforme ou não à técnica normalmente requerida.

Direitos, deveres e responsabilidades decorrentes

Se nos tempos passados impunha-se ao médico somente a obrigação de informar ao paciente o nome da enfermidade e uma descrição superficial da sua natureza, não se pronunciando sobre seu grau de compreensão acerca da informação que lhe era fornecida, após a Segunda Guerra Mundial a situação evolui e o consentimento informado culmina em exigência para levar a termo a atividade médica, esta baseada numa percepção ética que distingue e estabelece a dignidade da pessoa humana como pressuposto da sua autonomia moral e, portanto, da sua liberdade ou princípio de autonomia frente ao médico.

Preleciona Vargas (2002, p. 4) que, do ponto de vista da relação médico paciente, o consentimento informado representa “[...] um direito inalienável para o paciente e um dever inescusável para o médico”. Corrobora a Associação Médica Americana, ao reconhecer o paciente como “[...] o árbitro final quanto a se correrá os riscos envolvidos no tratamento ou na operação recomendados pelo médico, ou se arriscará a viver sem isso. Este é o direito natural do indivíduo, que a lei reconhece.” Ao mesmo refrão, o Papa João Paulo II (1982, p. A9) salienta que obrigar alguém a violar sua consciência “[...] é o golpe mais doloroso infligido à dignidade humana. Em certo sentido, é pior do que infligir a morte física, ou matar.” Inegável, portanto, a necessidade da sua obtenção.

Fazendo coro a tão fortes e contundentes assertivas, arrisca-se dizer que a inobservância do consentimento informado imputa ao médico, unilateralmente, a responsabilidade por quaisquer riscos próprios da intervenção, mesmo que não tenha havido culpa na produção do dano. Mister salientar que o consentimento informado não se apraz à conduta negligente.

O desrespeito à autonomia representa uma violação aos direitos do paciente, configurando hipótese de constrangimento ilegal previsto no caput do artigo 146 do Código Penal nacional, a não ser que esta intervenção esteja justificada por iminente perigo de vida, conforme indica o inciso I, parágrafo 3º, do mesmo dispositivo legal, ou ainda, se a coação é exercida para impedir o suicídio.

Curvar-se à autonomia do paciente que se recusa a receber um tratamento vital motivado nas próprias convicções religiosas incita o temor do profissional médico com relação às possíveis acusações de auxílio ao suicídio ou de omissão de socorro, previstos no Código Penal brasileiro, nos artigos 122 e 135, respectivamente. Estes dispositivos fundamentam o pensamento daqueles que aceitam a existência de imposição legal e dever moral para o médico intervir através do processo terapêutico para salvar uma vida, quando em iminente perigo. Porém, cabe ressaltar, a questão não é tão simples que se possa conter nos dispositivos do diploma penal. Novos valores afloram e o direito à vida, embora altaneiro, já não mais prossegue solitário, independente e superior a todos os demais direitos.

Considerações finais

Suaviza-se o encerramento deste breve artigo científico resgatando, nas palavras de Galvão (2000, p. 134), o desejo de todos aqueles que num momento de infelicidade ultrapassam as portas dos hospitais, não apenas à procura da tecnologia mais apropriada ao seu caso, mas na esperança de encontrar um profissional humano com o qual possam entabular uma relação de confiança, respeito e atenção: “Quando estiver agonizando, próximo a deixar esta breve passagem pela Terra, gostaria de ter ao meu lado um médico, que dominasse toda a tecnologia médica possível, porém que fosse capaz de dar-me um forte abraço de despedida.”



Referências

GALVÃO, Paulo Bezerra de Araújo. Tecnologia e medicina: imagens médicas e a relação médico-paciente. Bioética, Brasília, DF, v. 8, n. 1, p. 134, 2000.

GARCÍA DE LA SERRANA, Javier López y. El consentimiento informado y la responsabilidad civil medica. Asociación Española de Abogados Especializados en Responsabilidad Civil y Seguro, Málaga. Disponível em: Nota 7. Acesso em: 31 ago. 2004.

HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

MILL, John Stuart. On liberty. In: ADLER, M. J. (Ed.). Great books of the western world. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952. v. 43.

MOORE, George Edward. Principia ethica. Cambridge: Cambridge University Press, 1971.

PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação médico-paciente. Coimbra: Coimbra, 2004. (Publicações do Centro de Direito Biomédico, 9).

POPE denounces Polish crackdown. New York Times, New York, 11 jan. 1982, p. A9.

ROBERTO, Luciana Mendes Pereira. Responsabilidade civil do profissional de saúde & consentimento informado. 2. tir. Curitiba: Juruá, 2006.

RODRIGUES, João Vaz. O consentimento informado para o acto médico no ordenamento jurídico português: elementos para o estudo da manifestação da vontade do paciente. Coimbra: Coimbra, 2001.

RODRÍGUEZ ALMADA, Hugo. Los aspectos críticos de la responsabilidad médica y su prevención. Revista Médica do Uruguay, Montevideo-Uruguay, v. 17, n. 1, p. 18, abr. 2001.

VARGAS, Victor. Consentimiento informado y relación médico paciente. Revista Hospital Clínico Universidad de Chile, Santiago, v. 13, n. 1, p. 4, 2002.

Erro médico e iatrogenia




Delimitação do tema

Os danos provocados aos pacientes por profissionais da área da saúde, em particular os médicos, é um assunto polêmico, que desperta interesse desde prístinas eras até os dias de hoje. Contudo, na atualidade, a ampla tecnologia e as opções nos métodos diagnósticos e terapêuticos provoca um aumento nas chances de infortúnios (WEINBERG, 1953, p. 9-22).

No Brasil, o número de processos por erro médico analisados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), de 2002 ao final de 2008 mais que triplicou. Segundo a assessoria de imprensa do tribunal o volume de ações passou de 120 para 398. No primeiro semestre de 2009 existiam 471 casos, na sua maioria questionando a responsabilidade exclusiva do médico e não das instituições. O avanço das denúncias demonstra, por um lado, que os brasileiros estão mais cônscios dos seus direitos. Não obstante, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) compreende que a má-formação profissional dos médicos e as condições precárias ao exercício da profissão estabelecem o pano de fundo das estatísticas (PROCESSOS..., 2009).

No exame de Responsabilidade Civil decorrente da relação médico-paciente deve a abordagem realizar-se sob um duplo enfoque: o erro médico e a iatrogenia.

Erro

Erro é um conhecimento equivocado, falso, contrário ao certo e verdadeiro; sua presença desvirtua a ação médica, cujo objeto é a atenção do paciente e não o oposto. Origina-se o termo do latim errare significando “vagar, vagabundear, equivocar-se”. Também tem sido equivalente a “ofender, agravar, faltar”, ações exercidas sobre o paciente através do erro. Sucede da mesma forma com os vocábulos error, errante, errado, ou errata ou com os arcaísmos gerranza, errança, assim como os derivados deserrado “extraviado”, desarrar “perder o ânimo, cair em confusão”, errante “perdido” ou os cultismos aberrar “apartar-se do caminho”, errabundo, erradio, errôneo, errata, erronia, errático, errátil (COROMINAS, 1998, p. 842).

O erro médico numa acepção bem ampla é considerado a falha do médico no exercício da profissão. Decorre do descumprimento de um dever contratual ou extracontratual. Ao referir-se à responsabilidade médica, Moraes (1995, p. 239) afirma ser esta examinada a partir do que o médico “[...] fez e não deveria ter feito, deixou de fazer e deveria ter feito, falou e não deveria ter falado ou, ainda, não falou e deveria ter falado.”

Comete-se erro quando há ambigüidade, confunde-se o diagnóstico, o procedimento, a droga, o prognóstico, a profilaxia ou a reabilitação. Por isso, o equívoco transtorna ou afeta todos os ramos do exercício médico, em cada uma de suas partes, etapas, procedimentos ou condições de realização. O erro na Medicina tem projeções transcendentes na formação do médico, que ademais de receber instrução e treinamento suficientes para o aumento dos seus conhecimentos, habilidades e destrezas, deverá aperfeiçoar-se dentro de um marco humanístico que lhe permita não somente compreender, compadecer e alentar aos pacientes, mas compartir-lhes um trato amável, com respeito à sua condição humana e desenvolvendo a profissão com esteio na própria vocação pelo serviço.

Iatrogenia

A palavra iatrogenia deriva do grego (iatros = médico / gignesthai = nascer, que deriva da palavra genesis = produzir, significando qualquer ação decorrente da prática médica.

A partir do sentido etimológico e num sentido lato sensu, emprega-se o termo iatrogenia a toda ação médica, seja benéfica, inócua ou prejudicial. Mas, esta não é a conotação do termo que enfoca o interesse deste artigo no concernente aos transtornos na saúde, provocados direta ou indiretamente por palavras, ações de drogas ou intervenções médicas ou cirúrgicas, desde a prevenção até a reabilitação, a um sujeito ou a uma coletividade; de um médico ou de uma equipe de profissionais das ciências da saúde, desde a administração da docência e investigação.

A iatrogenia é o evento possível e indesejável, embora conhecido de antemão pelo médico cônscio de que a terapia e/ou sua intervenção causam efeitos nocivos que podem apresentar-se em algum momento (CERECEDO CORTINA, 1997, p. 76). O médico antecipadamente valora a conveniência de usar os recursos, por um lado benéficos, mas, por outro, possivelmente prejudiciais. As manifestações indesejáveis serão iatrogênicas, pois o emprego de drogas ou procedimentos que os provocaram reuniram os requisitos de uma indicação adequada, não obedecendo sua existência, em nenhum momento, a equívoco, descuido ou ignorância.

Distinção entre erro médico e iatrogenia

A novel medicina, ao conceituar a iatrogenia como todo dano causado ao paciente pela ação médica ou os males provocados pelo tratamento prescrito, estanca de forma direta o ingresso no campo da Responsabilidade Civil, pois os profissionais médicos responsáveis pela saúde alheia assumem uma obrigação de meios com a finalidade de aplicar toda a perícia e zelo que detêm e que seus pacientes presumem, cuja aferição de eventual desvio não vai além da reparação terapêutica. Por tal razão, sob a ótica do Direito Civil, necessária a distinção entre o dano iatrogênico e o erro médico no âmbito da Responsabilidade Civil, com vistas a tornar menos tormentosa a tarefa imposta ao Judiciário, a quem cabe dizer o Direito, fixando a responsabilidade, ao considerar os termos em sua justa acepção.

Neste sentido, decisão judicial:
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (9. Câmara). Civil. Responsabilidade civil. Doença de leggperthes. Dano médico. Iatrogenia. Se, por um lado, a lesão previsível - iatrogenia - é resultante do atuar médico, por outro, a imprudência, a negligência e a imperícia são causa que, uma vez comprovadas, geram a reparação civil. Definida como lesão previsível ou sequela do tratamento decorrente da invasão do corpo, a iatrogenia, ou dano iatrogênico, é também identificada como dano necessário e esperado do atuar médico. [...] Afastado, pois, o erro médico, conclui-se que o dano suportado pelo autor é iatrogênico, previsível e necessário no tratamento a que foi submetido o autor, decorrente, pois, do atuar médico, isento de responsabilidade civil. Improvimento do recurso. Apelação Cível nº 2004.001.11913. Relator: Desembargador Maldonado de Carvalho. Rio de Janeiro, 16 de abril de 2005. Tribunal de justiça do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Disponível em:
http://www.tj.rj.gov.br>;. Acesso em: 20 jun. 2005.

Ao se considerar por iatrogenia o tudo gerado pelo médico, é necessário considerar o que seja médico, para então se delimitar os atos do médico como profissional e não como ser humano, pois sua atividade consiste em cuidar do enfermo. Se as ações do profissional prejudicam o paciente, isto não significa cuidá-lo, afastando-se do que por definição seja o médico.

Sob tal aspecto, não é a iatrogenia o grupo de danos aos quais pode sucumbir o paciente durante seu trato com o médico, pois alguns destes danos originam-se na ignorância, equívoco, tergiversação, distração ou displicência. Neste sentido, não é iatrogenia, mas sim erro. Em troca, se há efeitos adversos resultantes do emprego correto de um fármaco ou da correta execução de um procedimento, ambos com a indicação devida, então é iatrogenia. Talvez esta diferenciação seja difícil, mas se em cada caso se analisarem os atos, será possível distinguir um erro da iatrogenia propriamente dita.

O erro médico origina enfermidade ou morte. A intervenção e o resultado da prática médica é alcançar um bem, tal como proposto por Aristóteles “O bem é aquele para o qual tendem todas as coisas.”

REFERÊNCIAS

CERECEDO CORTINA, Vicente B. Iatrogenia y erro médico. Revista Médica del Hospital General de México, v. 60, n. 2, abr./jun. 1997.

COROMINAS, J. Dicionário crítico etimológico. Madrid: Gredos, 1976, v. II, p. 315.

MICHAELIS: moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1998.

MELMON, K. L. Preventable drug reaction causes and cures semin. Med. Beth. Israel Hosp., n. 284, p. 1361-1367, 1971.

MORAES, Irany Novah. Erro médico e a justiça. 5. ed. São Paulo: Revista dos TRibunais, 1995.

PROCESSOS por erro médico no STJ triplicam em 6 anos. Estadão. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,processos-por-erro-medico-.... Acesso em: 17 nov. 2010.

WEINBERG, H. B. Iatrogenic heart disease. Ann. Intern. Med., n. 38, p. 9-22, 1953.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Interrupção da gestação de fetos anencéfalos

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As fotos são mostradas, para que as pessoas se conscientizem do mal da anencefalia.



Internauta pode opinar sobre a interrupção da gestação de fetos anencéfalos

Durante o mês de novembro de 2010, o internauta pode opinar sobre o projeto (PLS 227/04), que permite o aborto no caso de fetos anencéfalos. A pesquisa sobre o tema foi organizada pela Agência Senado, em parceria com a Secretaria de Pesquisa e Opinião (SEPOP) e ofereceu acesso no lado direito da página principal do Portal de Notícias do Senado.

Este é um dos temas mais polêmicos em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF), a partir do Projeto de Lei do Senado (PLS) 227/04, do senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR), que altera o artigo 128 do Código Penal (Decreto-Lei 2.848/1940) para incluir, entre os casos em que o aborto não é punido (quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e nos casos em que a gravidez resulta de estupro), a situação em que o feto ostenta o mal da anencefalia. O senador alega que as mulheres brasileiras com esse tipo de gravidez submetem-se a "[...] profundo sofrimento psicológico por todo o período gestacional." De acordo com o parlamentar, que é médico, as gestantes sofrem, além do trauma psíquico, prejuízos com relação à saúde corporal, tais como o aumento da incidência de eclampsia e de anormalidades placentárias. Segundo o senador: "É fundamental que a legislação brasileira contemple a possibilidade de interrupção da gravidez de fetos com anencefalia, caso seja o desejo da gestante e o ato seja praticado por médico habilitado."

Atualmente, o PLS 227/04 tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), onde aguarda parecer do relator, senador Edison Lobão (PMDB-MA).

Para contribuir na formação de pensamento crítico fundamentado, ofereço alguns trechos da minha Dissertação de Mestrado: "Da bioética ao biodireito: a tutela da vida no âmbito do direito civil", defendida frente à banca examinadora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em 1999. O texto foi reeditado, tendo em vista a evolução do pensamento humano no corpo social e no mundo científico.



Considerações iniciais


A contenda sobre o aborto levanta em primeiro lugar a questão do início da vida, para em seguida colocar-se quanto à personalidade jurídica atribuída ou não ao ser ainda em formação. A personalidade jurídica é um atributo da pessoa humana e a ela está indissoluvelmente atrelada. Permeia a vida, desde o seu início até o momento em que finda, resultando numa fusão que, desde o mais distante passado, origina inúmeras dissensões e desavenças.

A complexa questão do início da vida humana reacende-se com mais vigor nas últimas décadas nos discursos de biólogos, filósofos, juristas e do homem comum. Leva de imediato ao momento da concepção e aos primeiros estágios da nova vida, incorrendo sobre o respeito ético e a tutela legal que esta vida humana deverá merecer desde o seu início e no decorrer do seu desenvolvimento.

Em consequência, levantam-se argumentos favoráveis e outros tantos contrários à prática do aborto. Tema por demais ressonante no corpo social.

Em 15 de janeiro de 1985, o mundo se estarrecia com um dos mais impressionantes argumentos contra a descriminalização do aborto no mundo. Foi a primeira exibição, pelo Canal de Televisão de Torrington, Connecticut, de um filme de 28 minutos de duração, o Grito Silencioso, mostrando imagens intra-uterinas de um feto de 12 semanas, sendo extraído pelo processo de sucção, descrito por Joseph Scheidler, um ex-monge beneditino fundador da Liga de Ação Pró-Vida: O feto se encolhe para escapar do aparelho, que primeiro lhe arranca as pernas, depois os intestinos. Ele luta violentamente com os braços, e, no fim, sua cabeça cai, a boca aberta em agonia. A exibição de trechos dessa filmagem, em todo o mundo, chocou profundamente a opinião pública, sugerindo acaloradas polêmicas.

No Brasil, a repercussão não foi diferente. Na época da Assembleia Nacional Constituinte, o movimento de mulheres junto com o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, em 26 de agosto de 1986, prepararam a histórica Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes, com reivindicações específicas em diversas áreas de interesse da mulher, ali incluídos os problemas relativos à saúde, mais especificamente, ao aborto. A Carta estabelecia garantia à mulher, sobre o direito de conhecer e decidir sobre o seu próprio corpo, além de garantir-lhe a livre opção pela maternidade, compreendendo-se tanto a assistência ao pré-natal, ao parto e pós-parto, como o direito de evitar ou interromper a gravidez sem prejuízo para a sua saúde. O texto constitucional de 1988, se não permitiu o avanço da questão do aborto, pelo menos não retrocedeu, tendo em vista que 80% das reivindicações da Carta da Mulher Brasileira foram ali contempladas, no que se refere ao respeito à saúde da mulher.

Nomenclatura do aborto

A privação do nascimento configura, etimologicamente, o significado de aborto. O vocábulo vem de ad, que significa privação, e de ortis, que indica nascimento. Portanto, à ação ou efeito de interromper, dolosamente, a gravidez, com ou sem a expulsão do feto, dá-se o nome de aborto. Sendo dissolvido o produto da concepção, reabsorvido pelo organismo da mulher ou até mumificado, ou mesmo que a gestante morra antes da sua expulsão, não deixará de haver, no caso, o aborto (MIRABETE, 1998, p. 93). Gomes (1968, p. 405) define como criminosa a interrupção ilícita da prenhez, com a morte do produto, haja ou não a expulsão, qualquer que seja seu período evolutivo - da concepção até momentos antes do parto. Freire (1957, p. 68) indica-o como embrião ou feto não vital, o ato de abortar, abortamento, ou ainda como cousa rara, extraordinária, monstruosa. Segue-o Buarque de Hollanda (1999, p. 12), ao designá-lo de produção imperfeita; indivíduo disforme, monstro.

Seja qual for o significado proposto, a palavra aborto revela, por si só, uma situação de conflito, injustiça, sofrimento e morte; sustenta-se solitária, ao indicar através de sua pequena grafia uma enormidade de situações que permeiam o sentimento humano.

Tipologia do aborto

A literatura apresenta diversos tipos de aborto: terapêutico ou necessário, ético ou humanitário, aborto eugênico e anencefalia. Em outra oportunidade, apresentarei um texto sobre cada tipo de aborto, mas, neste instante, interessa ao artigo em desenvolvimento o anencéfalo, cuja especificidade será analisada a partir do próximo tópico.

 

O que é anencefalia?

A origem da anencefalia vem do grego, onde an significa sem e enkephalos significa encéfalo (VARGAS, 2004). Nesse passo, pode-se afirmar que a anencefalia é uma malformação incompatível com a vida. O diagnóstico é preciso e não existe tratamento disponível. Trata-se da forma mais grave das malformações congênitas do sistema nervoso central do embrião, materializada pelo fechamento do tubo neural (DTN). Sua origem é multifatorial, portanto, coexistem fatores genéticos e ambientais, em proporções variadas.

Enquanto a sociedade leiga entende a anencefalia como "monstruosidade consistente na falta de cérebro" (FERREIRA, 1995, p. 43), a sociedade científica define-a como malformação decorrente do não fechamento do neuroporo anterior do tubo neural do embrião, o que implica na ausência ou formação defeituosa dos hemisférios cerebrais. Essa malformação ocorre no 26° dia de gestação, momento no qual ocorre o fechamento do tubo neural: o período crítico varia do 21º ao 26º dia (FERREIRA, 1995, p. 43).

Segundo estatísticas do Estudo colaborativo latino-americano de malformações congênitas (ECLAMC), a incidência de casos de anencefalia é em torno de 1 para cada 1000 nascidos vivos. Esse estudo foi conduzido pelo Prof. Eduardo Castilla, da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), no Rio de Janeiro.

Os bebês com esse tipo de malformação não têm possibilidade de vida extra-uterina, pois as funções vitais como a respiração e batimentos cardíacos não são comandados normalmente. Se nascem com vida, a morte sobrevém em minutos ou em algumas horas. Nenhum tipo de tratamento pode ser oferecido para esses fetos, dentro ou fora do útero, sendo o diagnóstico feito por ultrassonografia durante a gravidez. Esse diagnóstico levanta grandes inquirições éticas e jurídicas, quanto à possibilidade de interrupção da gravidez, levando-se em consideração a inviabilidade da vida, o que conduz a uma gravidez tormentosa para a gestante.

Casuística nacional: decisões judiciais

Em razão do diagnóstico pré-natal, em dezembro de 1992, Miguel Kfouri Neto foi o primeiro juiz a conceder autorização para um aborto por anomalia fetal grave e incurável. A decisão foi classificada como um grande avanço da Ciência Jurídica brasileira (BRASIL, 1993, p. 61-62).

Em 1993, a paulista Cátia Corrêa de 24 anos, após constatar, no quinto mês de gravidez, que levava no ventre um feto cujo crânio não se havia formado e cuja coluna apresentava-se totalmente exposta, conseguiu a autorização do juiz 24 horas após receber os laudos médicos. Na 24ª semana realizou o aborto através de convênio médico e declarou sentir-se aliviada pois: “[...] não tinha mais condições psicológicas de prosseguir com aquela gravidez” (ABORTO..., 1994, p. 209).

Em 7 de julho de 1994, outra decisão, no mesmo teor, foi proferida pelo Juiz José Henrique Rodrigues Torres. A extremidade cefálica do feto apresentava ausência dos ossos do crânio e das estruturas cerebrais. Afirmou à época o magistrado, que exigir à interessada levar a termo a sua gravidez nas condições acima mencionadas: “[...] constitui, certamente, uma forma inquestionável de submetê-la a um inaceitável tratamento desumano, em flagrante violação aos direitos humanos e ao dogma constitucional” (BRASIL, 1995, p. 71).

A partir de então, inúmeras foram as autorizações judiciais para a prática do aborto de fetos anencefálicos, mas nem todos os magistrados exararam a mesma opinião sobre o tema.

O pedido de interrupção da gravidez feito pela cabeleireira Valéria Carla Semeão Marcolino, após descobrir, em exame pré-natal, que o seu feto apresentava formação deficiente da calota craniana com características de acefalia, foi indeferido pelo Juiz da 3ª Vara Cível de Belo Horizonte, Antônio Pádua Oliveira. Valéria recorreu da decisão e, no oitavo mês de gestação, conseguiu a autorização para o aborto (JUSTIÇA..., 1996, p. 8).

A empregada doméstica Sônia de Souza Freitas, não teve a mesma sorte e foi obrigada a assistir o filho anencéfalo nascer morto, após nove meses de gestação peregrinando por clínicas legais e clandestinas e Tribunais de Justiça (IVANISSEVICH, 1996. Saúde, p. 28).

Em outra caso, decidiu o Juiz Marcus Henrique Pinto Basílio, da 14ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, que sendo comprovado cientificamente que o feto não tem condições de vida extra-uterina e que tal manutenção de vida não vai ocorrer: “[...] a tutela jurídica não tem mais como ser exercida por falta de vida a preservar e assegurar” (Cf. COSTA, 1997, p. 88).

Também, em 1997, entendeu o Juiz Francisco Borges Ferreira Neto: "O Código Penal pátrio é de 1940. Passaram-se mais de cinquenta anos desde a sua entrada em vigor. A ciência médica evoluiu. Situações antes imprevisíveis, hoje podem ser antevistas. E refletem necessariamente na aplicação do direito. Assim é a hipótese do aborto em que existe a constatação da impossibilidade de vida extra-uterina do feto por malformação física, como ocorre no caso de anencefalia (ausência de caixa craniana e de tecido cerebral) [...] insistir no prosseguimento de uma gravidez sem possibilidades de êxito, como no caso de anencefalia, quando há vontade contrária da requerente, representa capricho irresponsável, que, a par do sofrimento natural, poderá ensejar risco potencial e grave comprometimento psicológico. Há, ainda, não se pode esquecer, a possibilidade de risco à saúde da requerente, com eventual reflexo em suas condições de vida. E isso deve ser impedido, no mínimo por razões humanitárias [...] Não pretendo, insisto, que quaisquer anomalias ou deformidades dêem ensejo à interrupção da gravidez, liberalidade perigosa" (BRASIL, 1997. Memo).

Em 1997, a ginecologista Maria Auxiliadora Mota Gadelha Vieira, CRM 2309, residente em Fortaleza, no Ceará, afirmou quem por diversas vezes, sentiu-se impotente diante desse sofrimento que atormenta a dignidade humana. Repudiou a atitude omissa dos responsáveis pela Justiça no Brasil, ao afirmar: “[...] há que ser respeitado o paciente, que no caso é a mãe e a família e não o feto, que já está morto, ou morrerá em vinte e quatro horas a partir do nascimento.”

Anteriormente, em junho de 1994, o médico Aníbal Faúndes, diretor do Centro de Assistência Integral à Saúde da Mulher (CAISM), da Universidade de Campinas, em São Paulo, fora mais longe, ao declarar à Folha de São Paulo que fizera, sem permissão da justiça, abortos em fetos malformados que não tinham condições de sobrevivência, passando a ser o primeiro especialista famoso a assumir publicamente suas ações quanto ao tema (ABORTO..., 1994, p. 201).

As novas situações navegaram na incerteza dos tribunais, guiadas pelo elemento subjetivo, que pode conduzir a decisão de alguns juízes ao aumento do descompasso da lei em relação aos fatos sociais.

Alcançado este ponto, realizo um salto de 10 anos no tempo, tendo em vista que esta parte da pesquisa encontra-se em fase de ampliação.

Em 1º de julho de 2004, o Ministro Marco Aurélio, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 formulada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), concedeu liminar ad referendum do Tribunal Pleno.

STF cassou liminar que permitia interrupção de gravidez de feto anencéfalo

Os ministros do Supremo Tribunal Federal, por maioria, decidiram revogar a liminar deferida pelo ministro Marco Aurélio, em 1º de julho de 2004, que legitimava a interrupção de parto de feto anencéfalo.

Contra o referendo que cassava a liminar, votaram os ministros Eros Grau, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Carlos Velloso e Nelson Jobim. Além do relator, votaram pelo referendo da liminar os ministros Carlos Ayres Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence. Apenas o ministro Cezar Peluso, votou no sentido de cassar a íntegra da liminar, inclusive no que se refere à suspensão dos processos e decisões relativas ao assunto. A liminar esteve em vigor de 1º de julho até o dia 20 de outubro de 2004.

Realizaram-se até a época, com respaldo nessa liminar, três abortos de fetos com anencefalia, sendo dois no Estado de São Paulo e um no Rio de Janeiro.

Alheio à intervenção do STF, em novembro de 2004, o juiz Jesseir Coelho de Alcântara, da 1ª Vara Criminal de Goiânia, acatou parecer do Ministério Público Estadual acrescido de laudo médico específico e autorizou que uma dona de casa, grávida de cinco meses, fizesse o aborto do seu feto anencefálico. Afirmou a autoridade, o direito da mulher decidir-se pelo aborto, mesmo com a recente decisão do STF, que cassou a liminar do ministro Marco Aurélio a favor de aborto em caso similar. E afirmou: "Quem se sentir lesado que recorra." Para o magistrado, a interrupção da gravidez deve ser admitida quando se verificar a impossibilidade de vida autônoma do feto, como no caso da acrania (ausência de crânio), anencefalia (ausência de cérebro) ou anomalias semelhantes constatadas por uma equipe de médicos.

Interrupção da gestação de fetos anencéfalos no STF

Em 25 de maio de 1999, frente à Banca Examinadora, em defesa da Dissertação de Mestrado acima referida, a Professora Maria Celina Boudin perguntou-me que tipo de lei deveria ser criada para regulamentar as novas situações que anunciava em meu trabalho. Respondi-lhe que as novas leis não poderiam ser criadas da forma como eram formuladas as demais leis. No caso da vida humana, deveria ser ouvida a população e representantes do mundo científico, entre esses: médicos, cientistas na área da genética, filósofos, advogados, religiosos, entre outros. A ideia lançada parecia estranha à época, mas, em 20 de abril de 2007, ocorreu no Supremo Tribunal Federal a realização da primeira Consulta Pública da casa, sobre o tema “Início da Vida”, que, segundo o Ministro Carlos Ayres Britto, homenageou o pluralismo indispensável para assegurar a democracia. Portanto, considero-me pioneira - vitoriosa - nessa epopeia.

O feito repetiu-se em 2008, quando o STF realizou uma série de audiências públicas com especialistas, autoridades do governo, entidades religiosas e da sociedade civil para debater a questão do feto anencéfalo, mas, até hoje, não decidiu a respeito. O relator da matéria no STF é o ministro Marco Aurélio Mello.

O caso Marcela de Jesus


Durante as discussões no STF, alguns defensores da não interrupção da gestação para o caso dos anencéfalos, alegaram em matéria de defesa, o caso de Marcela de Jesus, que sobreviveu um ano e oito meses, ainda que sob um diagnóstico de anencefalia. Contudo, na última audiência pública, alguns especialistas em fetologia apresentaram um estudo que comprovava não ser a menina portadora de anencefalia. Segundo estudos médicos, Marcela padecia de outro tipo de malformação do cérebro.

Transplante de órgãos de anencéfalos
O caso do bebê Arthur


O transplante de órgãos, a partir de neonatos anencéfalos, sugere um confito ético, que vem sendo a pedra de toque do mundo jurídico na última década, em especial. Isso ocorre, porque os referidos neonatos, pelo critério de morte cerebral inserido no artigo 3º da Lei nº 9.434 de 4 de fevereiro de 1997, são considerados pessoas vivas, pois morte encefálica implica na falência, inclusive do tronco encefálico, o que não se configura no neonato. Por outro lado, a Resolução nº 1.752 de 13 de setembro de 2004, do Conselho Federal de Medicina (CFM), institui a permissão para o médico realizar transplante de órgãos ou tecidos do anencéfalo, após o seu nascimento. Sendo assim, o CFM autoriza a morte do neonato, segundo os parâmetros legais. Marco Antônio Becker, primeiro secretário do CFM e relator da Resolução nº 1.752/04, explicou: "A espera pela morte do tronco cerebral para garantir a existência de morte cerebral só pode ser aplicada nos que têm cérebro." E finalizou: "Quem não tem cérebro, como é o caso do anencéfalo, não pode sofrer o mesmo critério." Essa posição do CFM, provoca repulsa de diversos estudiosos, por considerá-la utilitarista.

Ao final de 2005, o transplante de órgãos do anencéfalo ganhou destaque com o caso do bebê Arthur Blauth Schobach Santos, com início no Hospital Pró-Cardíaco, no Rio de Janeiro e término no Incor. O bebê sofria de hipoplasia e morreu em 10 de abril de 2006, aos 4 meses de idade, por ausência de doador. Nos dois primeiros meses de vida, seria possível que Arthur recebesse o coração de um bebê com anencefalia, mas, após este período, estaria muito crescido. Para esses casos, o doador da criança somente pode ser aquele com peso igual ou até duas vezes mais que o receptor, para ser compatível. Rafael Paim, o pai do bebê, procurou um doador: "Na época, apareceram 18 famílias dispostas a doar o coração do filho anencéfalo para o Arthur. Dois eram compatíveis com o peso do meu filho. Cheguei até a entrar na Justiça para ter a garantia de que meu filho pudesse ser operado, mas foi tarde demais." O bebê Arthur teria sido o primeiro a beneficiar-se da Resolução nº 1.752/04.

O bioeticista Marco Segre, da Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas e professor emérito de Bioética, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), considera a atitude do Governo Federal "fundamentalista", por não permitir o transplante imediato de um bebê que vai ter dias ou semanas de vida: "Faz parte da definição de morte encefálica a irreversibilidade da situação. O bebê com anencefalia não vai sobreviver. Isso é irreversível."

Ao ser procurado pelo Estado, Roberto Schlindwein coordenador do SNT, do Ministério da Saúde, confirmou por meio da assessoria de imprensa, a entrega do documento ao Conselho Federal de Medicina (CFM), mas esquivou-se de comentar o assunto.

Minha opinião sobre o tema
PROPOSTA LEGE FERENDA


A vida é o bem mais elevado, mas não caminha solitariamente. Deve ser interpretado em harmonia ao princípio da dignidade humana. Não me escuso à verdade de que a vida, mesmo em estado periclitante, tal uma chama que se apaga lentamente - é vida - e deve ser considerada pela dignidade que ostenta. Entretanto, ao meu olhar, não pode nenhuma lei impor-se aos valores mais íntimos de cada ser humano, obrigando-o a seguir vivendo com comportamentos limítrofes como a santidade ou o heroísmo, valores mui dignos de atenção, mas que não se devem impor.

Conquanto respeite o sofrimento da nutriz que carrega no ventre um filho anencéfalo, que não sobreviverá ao desligar-se do seu corpo, não compactuo com os argumentos que se colocam a favor da interrupção dessa gestação, exclusivamente, a partir do sofrimento daquela mesma mãe. Sinto necessidade imperiosa de fazê-lo através do bem-estar do próprio feto.

Nesse sentido, inicio por não utilizar o termo "aborto" para o caso do anencéfalo, mas sim a expressão morte piedosa in utero, pois ofereço ao neonato desafortunado a antecipação da sua morte ainda no berço maternal, com todo o respeito que merece, pelo simples fato de ostentar a essência humana.

Por outro lado, caberá à Medicina afastar-se das formas cruéis e indignas de realização do aborto, cabendo ao Direito estabelecer regras que proíbam o esquartejamento dos fetos, que são retirados do útero materno pedaço por pedaço, como se reles coisas fossem. Mais detalhes desse posicionamento encontram-se em desenvolvimento em obra sobre o tema, a ser publicada oportunamente.

Fotos: Fonte de pesquisa